N. 9 – 2010
– Memorie/Tradizione-repubblicana-romana-III
Ronaldo Rebello de Britto Poletti*
Universidade de Brasília
Municípios e poderes
tribunícios
Sumário: 1. Três temas para reflexão em face da
secessão plebéia. – 2. Direito
de resistência aos governos injustos. – 3. O
município no Brasil vindo de Roma por Portugal. – 3.1. No Brasil independente. – 3.2. Na República. – 3.3. Na Constituição de 1988. – 4. Por detrás da seara histórica do
município brasileiro. – 5. Maior
domínio na representação política. Uma analogia
possível: os representantes (patriciado) e os munícipes (plebe).
– 6. Município e
resistência. O defensor do povo e seus eventuais poderes.
As comemorações da
secessão da plebe, seu juramento no Monte Sagrado, a
criação da magistratura tribunícia, sugerem três
direções para uma reflexão contemporânea na construção
constitucional do futuro, fundada na permanência de idéias e de
experiências e tendo em vista a realidade do município.
Primeira. A resistência
aos governos injustos, cujo exemplo inédito na história é
a revolução da plebe.
Segunda. A resistência do
povo nos municípios, onde o homem concreto está situado, em face
da representação liberal.
Terceira. A possibilidade de um
sistema político que integre, em uma síntese, duas forças
contrárias (cidades, estamentos, classes, não importa), como foi
a república patrícia-plebéia.
A secessão da
plebe há dois mil e quinhentos anos e a criação do tribuno
da plebe foi, provavelmente, o primeiro exemplo do exercício do direito
de resistência, o qual se projetou nos tempos futuros como um dos direitos
fundamentais do homem e do povo.
Este
“direito” veio a constar de várias declarações
de direitos, porém não de resistência violenta, e quando
menos como um direito implícito. Ele não consta, por exemplo, da
Declaração de Direitos da Constituição de 1988 da
República Federativa do Brasil, não obstante essa
Declaração seja um dos pontos considerados mais abrangentes
daquela Lei Maior brasileira.
Está, todavia,
presente na Declaração dos Direitos Humanos da Assembléia
das Nações Unidas, de 6 de dezembro de 1948. Um dos seus consideranda afirma ser
«essencial, para evitar que o Homem se veja compelido a rebelar-se
– como último recurso – contra a tirania e a
opressão, que os direitos humanos sejam protegidos por um regime
jurídico»
e o art. 8 dispõe:
«todos têm direito a um recurso efetivo perante os tribunais
nacionais competentes por atos que violem seus direitos fundamentais outorgados
pela Constituição ou pela Lei».
E se não houver tribunais ou
forem eles omissos e inoperantes ou controlados pelo poder violador dos direitos
fundamentais? E se o sistema político, por si só, impedir a
possibilidade de reação, ainda mais se o sistema mascarar uma
falsa “democracia”, por intermédio de técnica
dissimuladora e ficta de eleições e de
representação?
O direito de
resistência aos governos injustos não mais tem constado nos
ordenamentos positivos, ainda mais sob a qualificação de
resistência “violenta”. No entanto, a
Declaração de Independência dos Estados Unidos da América,
de 4 de julho de 1776, estabeleceu que os governos são instituidos para
assegurar os direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida,
a liberdade e a busca da felicidade, além da condição de
igualdade com que nascem todas as criaturas humanas:
«... quando qualquer forma de governo se torna ofensiva destes fins,
é direito do povo alterá-la ou aboli-la, e instituir um novo
governo, baseando-o nos princípios e organizando os seus poderes pela
forma que lhe pareça mais adequada a promover a sua segurança e
felicidade. A prudência aconselha a não mudar governos há muito
estabelecidos em virtude de causas ligeiras e passageiras; e, na verdade, toda
experiência tem demonstrado que os homens estão mais dispostos a
sofrer males insuportáveis do que a fazer justiça a si
próprios, abolindo as formas a que estão acostumados. Mas, quando
uma longa sucessão de abusos e usurpações, visando
invariavelmente o mesmo fim, revela o desígnio de os submeter ao
despotismo absoluto, é seu direito, é seu dever, livrar-se de tal
governo e tomar providências para bem da sua segurança ...».
Na
Revolução Francesa, o art. 2 da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789, proclamava:
«O fim de toda a associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do
homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança
e a resistência á opressão».
A
Declaração do Ano I, de 24 de junho de 1793, já
republicana e sob a influência de Robespierre, é mais clara e mais
incisiva:
«Art. 33. A resistência à opressão é
conseqüência dos outros direitos do homem. Art. 34. Há
opressão contra o corpo social quando um só dos seus membros
é oprimido. Há opressão contra cada um dos membros quando
o corpo social é oprimido. Art. 35. Sempre que o Governo viola os
direitos do povo, a insurreição constitui, para o povo e para
cada porção do povo, o mais sagrado dos direitos e o mais
indispensável dos deveres».
O direito de
resistência mereceu a reflexão de Santo Tomás de Aquino, no
De Regimine Principium, moderando-o e
fixando-lhe os fundamentos doutrinários. «Se não houver
excesso de tirania é mais prudente suportá-la por certo tempo do
que agir contra o tirano, de modo a suscitar muitos perigos que são mais
graves do que a própria tirania. Pode, com efeito, suceder que a tentativa
de derrubar o tirano não surta efeito e resulte, ao contrário,
num agravamento da tirania. Se, porém, for possível derrubar o
tirano, dessa mesma vitória provêm muitas vezes graves
dissenções no meio do povo. Quer durante a revolução,
quer depois de derrubado o tirano, separa-se o povo em muitos partidos quando
se trata de organizar o novo regime. Sucede que o povo se sirva, durante a
revolução, de certos auxiliares que, depois de derrubado o
tirano, apoderam-se do poder e venham a oprimir os súditos ainda mais pesadamente,
temendo sofrer de outros o mesmo que fizeram sofrer»[1].
Alceu Amoroso Lima
elabora interessante resumo sobre o tema, sintetizando em três os perigos
que Santo Tomás vê nas revoluções: a) um agravamento
da tirania caso não seja vitoriosa; b) a luta entre os vencedores, no
caso de ser derrubado o regime anterior; e c) a possibilidade de vir um novo
tirano pior que o antecedente.
«... conclui a sabedoria do filósofo que é melhor
suportar durante algum tempo uma tirania moderada do que recorrer
precipitadamente a remédios que por vezes são mais fortes
não só do que a moléstia, mas ainda do que o
próprio doente».
No entanto, o governo
tirânico pode ser intolerável. Nesse caso: Videtur autem magis contra tyrannorum saevitiam non privata
praesumptione aliquorum, sed auctoritate publica procedendum (Contra a
violência dos tiranos parece que se deve proceder recorrendo à
autoridade pública e não à ousadia dos cidadãos
particulares) (De Regimine Principum,
VI). São três as condições gerais, segundo Santo
Tomás, para que uma revolução seja legítima: a)
haver um excesso de tirania, “excessus tyrannidis”; b) a
iniciativa pertencer à autoridade pública e não a
quaisquer particulares, non privata
praesumptione aliquorum, sed auctoritate publica procedendum, isto
é, pertencer àqueles que escolhem os governantes ou os
fiscalizam; c) esgotando-se os meios justos, só se recorra à
misericórdia divina, nunca aos meios injustos.
Um eminente professor
brasileiro, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo,
Goffredo Telles Júnior, na década de 50, desenvolveu importantes
estudos sobre o tema, que foram publicados e divulgados em inúmeras
revistas[2]. Além de ampla
pesquisa sobre os textos constitucionais históricos, Goffredo desenvolve
a relação do direito de revolução com a categoria
do direito subjetivo, sempre referido a uma norma objetiva, traçando
considerações sobre a existência, ou não, da
legalidade e legitimidade das revoluções. Não haveria mais
normas jurídicas para sustentar o direito subjetivo às
revoluções. As revoluções somente se legitimam
quando triunfam. A resistência violenta não é um direito,
é um fato. Um governo pode ser injusto por sua origem ou por seu
funcionamento. Por origem: instalado pela força ou pela fraude, sem
atenção para as idéias constitucionais do grupo,
não sendo fruto de uma exigência do poder legítimo (o poder
não emana do povo). Um governo injusto na origem pode transformar-se em
justo por funcionamento, ou vice versa. Um governo injusto pode existir por erro ou por abuso. De qualquer maneira, é preciso tomar cuidado com as
revoluções. Jackson de Figueiredo teria afirmado que «a
melhor revolução é pior do que a pior legalidade»[3].
O município é uma
criatura de Roma. O município romano assume em Portugal uma forma
peculiar, sendo depois transplantado para o Brasil, onde
modificações foram introduzidas pelos diversos regimes
jurídicos e situações de fato a que foi submetido.
O tema
histórico-jurídico e político do município, cujo
conceito está próximo da idéia de civitas, tem implicações com a
construção, garantia e aprimoramento da cidadania e da
democracia. Não se confunda a civitas
com a urbs, que é uma forma
tardia da primeira. A civitas
é onde efetivamente está o cives,
ou o cidadão. A partir da civitas
é que a política e cidadania se abraçarão[4].
No Brasil, há
significativa bibliografia sobre o município, não obstante o tema
venha sofrendo influências de natureza política, no sentido em que
o município brasileiro tem sido objeto de diversos programas
partidários, sempre voltados ao sucesso das eleições
representativas e destinados a sensibilizar o eleitorado municipal, cuja
força é inquestionável. Além disso, as doutrinas
políticas podem suscitar diferentes colocações
ideológicas[5],
na defesa de maior ou menor autonomia. O ponto mais forte do poder
político pode variar, conforme estiver situado em cada uma das pessoas
jurídicas de direito público interno, com as quais o Estado
brasileiro atua internamente: a União, os Estados membros e os
Municípios.
Na Constituinte de 1946, houve
um grande debate em torno da autonomia municipal, praticamente inexistente na
Constituição anterior (1937 - Ditadura do Estado Novo)[6].
Criou-se, então, forte movimento municipalista, com o objetivo de
ampliar a autonomia municipal, fortalecendo o poder político e
financeiro da comuna[7].
Quaisquer que sejam as
discussões sobre o municipalismo e as eventuais críticas a essa
cadeia histórica, as raízes institucionais do Brasil passam pela
península ibérica, a qual integrou o Império Romano e
esteve sujeita ao governo provincial de Roma.
Sob o principado de Augusto, a
Península compreendia três províncias: a Hispânia
Tarraconense, a Bética e a Lusitânia.
Província era,
primitivamente, o conjunto das atribuições conferidas em especial
a um magistrado cum imperio. Os
primeiros governadores eram pretores que recebiam as suas províncias.
Com o tempo, a expressão “província” assumiu o
significado de governo de território fora da Itália e, depois, de
território submetido à jurisdição de um magistrado
com império. As províncias eram senatoriais ou provinciae populi, quando administradas
pelo Senado, ou províncias imperiais, quando confiadas pelo Senado ao
Imperador. A Bética (atual Andaluzia) era senatorial e as outras duas
imperiais. Em 212, Caracala criou uma nova província, com os
territórios da Galiza e das Astúrias, mais tarde chamada
Galécia. As províncias passaram também por muitas
transformações nas suas estruturas jurídicas e
administrativas[8].
O Governador Provincial
administrava justiça aos cidadãos e aos não
cidadãos, e nos primeiros tempos se deslocava em certas datas às
principais localidades da província, onde os cidadãos romanos da
vizinhança se reuniam: conventus
civium Romanorum.
Dentro de cada província,
a unidade político-administrativa era a civitas: a comunidade política indígena dotada de
governo e leis próprias, até o século II, e, depois,
também a comunidade organizada em moldes romanos. Havia comunidades
urbanas e rurais. Marcelo Caetano chama cidades de tipo indígena as
antigas comunidades que mantinham sua organização mais ou menos
alterada pelo conquistador e denomina cidades de tipo romano aquelas
comunidades reorganizadas segundo os critérios romanos ou fundadas pelos
Romanos. As de tipo indígena são as estipendiárias e as
cidades livres. As de tipo romano são as colônias e os
municípios. As estipendiárias eram as cidades conquistadas pela
guerra ou as que, na resistência, negociaram a tempo a sua
rendição ao povo romano (deditio).
As cidades livres eram as
comunidades urbanas que se governavam sob a forma republicana, conservando as
suas próprias leis e instituições. Não pertenciam
à província romana onde se situavam[9].
O município designa a
cidade indígena acolhida na comunidade romana, variando no tempo os
efeitos dessa integração.
Os cidadãos do
município são cidadãos romanos, ora optimo iure, ora sine
suffragio, que ficavam com o encargo (munus)
de pagar o tributo a Roma e de lhe prestar auxílio militar.
Municipes
apellantur muneris participes recepti in civitate ut munera nobiscum facerent (Digesto
50.1.1 - Ulpiano).
A pátria do
munícipe era Roma: Roma communis
nostra patria est (Digesto 50.1.33 - Modestino). Roma passou a funcionar
como símbolo da integração entre as cidades.
No Império,
município era qualquer cidade de tipo romano, mesmo se não
tivesse havido plena integração no Direito Romano, mas fosse uma
colônia fundada por romanos ou por latinos.
As relações entre
o município e Roma eram regidas por uma lex municipalis. Lei para cada caso, mas que, posteriormente, foi
assumindo certa uniformidade. Marcelo Caetano ensina:
«No
princípio do Império, os municípios em geral gozavam de
certa autonomia dentro dos limites de seu estatuto: cobravam receitas e
gastavam os seus dinheiros no que bem lhes parecia, tinham leis
próprias, magistrados para administrar justiça e alguns, embora
poucos, cunharam moeda e levantaram tropas»[10].
No caso da civitas optimo iure, a lex
institutiva outorgava plena cidadania - Aulo Gélio, nas Noctes Atticae escreveu: municipes ergo sunt cives Romani ex
municipiis legibus suis et suo iure utentes. Tinham magistrados, certa
jurisdição e suas próprias leis.
Nos municípios,
até o século II d. C., havia os comitia curiata e os comitia
tributa. Participavam dos comícios os cives, municipes, isto
é, os homens livres considerados originados dele (origo) por qualquer das razões admitidas em Direito:
nascimento, adoção, manumissão, admissão pelos
comícios. O conjunto dos cidadãos formava o populus.
A assembléia ou conselho
dos decuriões (ordo decurionum),
chamado de Senado e depois de Cúria, era o mais alto órgão
da administração municipal. Tal conselho era constituído
por membros vitalícios, escolhidos dentre os antigos magistrados,
pronunciava-se sobre assuntos de interesse da cidade e julgava o recurso de
decisões dos magistrados.
Em tudo, esses municípios
eram semelhantes ao modelo de Roma. O grau de intervenção do
poder central variava, mas ainda no começo do século IV os
governadores das províncias foram sensíveis aos queixumes dos
povos e nomearam para os municípios um seu delegado, com a missão
de proteger os habitantes contra os vexames dos magistrados: chamava-se defensor plebis ou defensor civitatis[11].
Plínio, o Antigo, na sua Naturalis historia, escrita no ano 80
d.C., livro IV, § 35, refere-se às cidades da Lusitânia,
dentre elas a de um município de cidadãos romanos: Olisipo
(Lisboa)[12].
Em seguida a essa notável
influência do Direito Romano, houve a presença do Direito dos
povos bárbaros, especialmente do Direito Visigótico.
Teriam as instituições
municipais romanas resistido às invasões germânicas e
até à ocupação muçulmana? Teriam permanecido
em estado latente até ressurgirem após a reconquista, como pensava
Alexandre Herculano? Marcelo Caetano sustenta que o município romano
extinguiu-se no período bárbaro e não teve qualquer
condição de persistir sob o domínio muçulmano[13].
No começo da monarquia
visigótica, ainda havia a Cúria (cf. Código Visigótico V.4.19), mas sem importância
prática e logo absorvida por autoridades designadas pelo rei. Durante
alguns anos, todavia, a Cúria elegeu magistrados municipais (defensor e
os cobradores e impostos). No século VII, os defensores passaram a ser
designados pelo bispo ou pelo povo, porém com atribuições
restritas.
O Código Visigótico
faz referência, ainda, ao conventus
publicus vicinorum (VIII.4.14 e 5.6), reunião de homens livres para
tratar de assuntos vicinais.
Até o século VIII,
as cidades conservaram as instituições municipais da época
anterior, as quais se transformaram ou desapareceram pela intervenção
do conde e de seu vigário no governo da cidade. Tais funcionários
intervieram no referido conventus
publicus vicinorum das aldeias ou
povoados[14].
Na verdade, os povos
bárbaros, em geral, admiraram-se em face das instituições
romanas. No domínio ostrogodo, p. ex., manteve o antigo Senado romano,
não obstante reduzido ao papel de Conselho Municipal da cidade de Roma[15].
Daí, talvez, a idéia de que passado o primeiro impacto das
invasões bárbaras, o município antigo ressurgiu, quase
intacto. Tal é a tese da chamada Escola Romanista (tudo se teria passado
após a invasão como se ela não tivesse acontecido), em
contraposição à Escola Germanista, segundo a qual os
germanos haviam trazido um sangue novo que proporcionaria liberdade, progresso
e vigor à latinidade decrépita[16].
No período do
domínio muçulmano, a administração das cidades
é mal conhecida. As mais importantes tinham um governador. As palavras
árabes incorporadas à língua portuguesa revelam, no
entanto, importância jurídica-administrativa: o juiz ordinário
era o cadi, de al-cadi, donde alcaide (= alcaide, chefe militar). Para a
polícia econômica das cidades, havia o juiz do mercado,
almotacé, e para a cobrança dos impostos, o almoxarife. No
entanto, depois da reconquista, parecem, mesmo a Herculano, restar
“obscuros vestígios” do município moçarabe[17].
A palavra concelho (na
referência a concelho municipal) já era usada no começo do
século XIII. Indicava a comunidade dos vizinhos, que eram os
“homens-bons”.
Marcelo Caetano elucida:
«O ponto de
partida é o concilium, a
assembléia dos vizinhos de uma povoação reunida para
tratar dos seus interesses comuns. Isto pressupõe uma
povoação de homens livres, que têm de resolver os seus
problemas pelos próprios meios»[18].
A provável origem social
dessas comunidades, antes do seu reconhecimento oficial, foi, segundo Marcelo
Caetano, na trilha que Ataliba Nogueira defenderia quanto à origem do
município brasileiro, a transformação da freguesia ou
paróquia e da igreja, onde para os atos de culto se reuniam os
fiéis, os quais, depois do culto, iam para o adro conversar sobre os
interesses comuns. Os primeiros problemas a exigir a intervenção
dos concelhos eram os econômicos - pastos e águas comuns,
apascentação dos rebanhos, ajuda à lavoura e, depois, a
necessidade de punir os que não cumpriam as decisões da
comunidade. Quando a povoação tinha necessidade de tratar com
outras povoações ou com o rei ou com o rico-homem, os mensageiros
falavam em nome das assembléias, i. é, dos concelhos, o qual,
assim, assume uma personalidade jurídica: uma coletividade com
personalidade distinta dos indivíduos que a compõe. A pessoa
coletiva atuava por intermédio de órgãos próprios.
Essa assembléia dos vizinhos podia designar alguns de seus membros para
a resolução de casos ou para a execução de
deliberação: são os magistrados eventuais[19].
Sobre a origem desses concelhos,
há significativa discussão. Alexandre Herculano sustenta a sua
descendência no município romano, enquanto Sanchez Albarnoz, Gama
Barros e Marcelo Caetano entendem que os vestígios das
instituições municipais romanas conservadas no final da monarquia
visigótica desapareceram durante o domínio mulçulmano[20].
Marcelo Caetano, no entanto,
assinala que as semelhanças que se podem notar entre a
organização dos concelhos medievais e as dos municípios
romanos devem provir de duas origens: 1ª porque as mesmas necessidades,
quando em análogas circunstâncias, fazem surgir as mesmas
soluções; 2ª porque o clero, na leitura dos livros que conservavam
a memória das instituições romanas, encontrava
soluções ou fórmulas que fazia adotar, dando-se assim uma
romanização do município medieval por via erudita que
é, em muitos casos, inegável[21].
O Município
português continuou a sua seara histórica, sofrendo depois da
consolidação do Estado português, inúmeras
influências, dentre elas a recepção do Direito Justinianeu
em Portugal, além da fixação do direito
consuetudinário local, com a redação dos costumes
municipais nos diversos concelhos.
Já sob a influência
do direito imperial romano, de 1385, início do reinado de D. João
I até, aproximadamente 1454 (quando publicadas) foi elaborada a
compilação que se chamou Ordenações Afonsinas (D.
Afonso V)[22].
Do ponto de vista histórico, as cidades brasileiras, desde as suas
fundações desempenharam um papel notável, notadamente na
defesa do território. O historiador Hélio Vianna, ao fazer o
elogio do sistema das capitanias hereditárias, cujo significado tem sido
objeto de certa polêmica (seriam ou não ressurreição
do regime feudal da Idade Média?), salienta que os franceses e seus
aliados indígenas somente conseguiram fixar-se, durante algum tempo,
onde os donatários não haviam se localizado (Rio de Janeiro,
Sergipe, Paraíba, Rio Grande, Ceará e Maranhão). Ao contrário,
onde foram fundadas as primeiras vilas, mesmo pequenas e fracas, foram
rechaçados os entrelopos, corsários e piratas, franceses,
ingleses e holandeses, que então corriam os mares: em São
Vicente, no Espírito Santo, Ilhéus, Bahia e Pernambuco[23].
As primeiras vilas do Brasil
foram a de São Vicente, fundada por Martim Afonso de Sousa, em 1532, e
uma outra a nove léguas daquela dentro pelo sertão, à
borda de um rio que se chama Piratininga. Narra Pero Lopes de Sousa,
irmão daquele Capitão:
«... e
repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficiais; e pôs tudo em
boa obra de justiça, de que a gente tomou muita
consolação, com verem povoar vilas e ter leis e
sacrifícios, e celebrar matrimônios, e viverem em
comunicação das artes; e ser cada um senhor do seu; e vestir a as
injúrias particulares; e ter todos os outros bens da vida segura e
conversável»[24].
Nesses municípios
(São Vicente e Piratininga), não obstante regidos pelas
então vigentes Ordenações Manuelinas, Francisco Adolfo de
Varnhagen (Visconde de Porto Seguro) sustenta:
Na capitania de Martim Afonso,
que do nome da povoação capital se chamou de São Vicente,
prosperam as duas vilas fundadas. O vigário Gonçalo Monteiro rege
na marinha. O Sertanejo João Ramalho capitaneia no campo, e influi em
Piratininga. É natural que desde logo em uma vila se organizasse um
simulacro de câmaras municipais, com seus vereadores: - estes
provavelmente seriam a princípio de nomeação, e não
eleição; - pois não se poderia esta fazer, sem se apurarem
os homens-bons que, em conformidade das ordenações, deviam ser os
eleitores[25].
Os donatários das
Capitanias tinham o poder, concedido por D. João III, de criar vilas,
participando das eleições, outorgando-lhes insígnias e
direitos, expressos em forais. As Câmaras Municipais somente podiam ser
instaladas nas localidades onde houvesse a categoria de vila, concedida por ato
régio[26].
As vilas mais importantes,
fundadas de acordo com o sistema das Capitanias, no século XVI, foram as
seguintes:
Conceição
(Capitania de Itamaracá); Igaraçu e Olinda (Capit. de
Pernambuco); São Jorge dos Ihéus (Capit. dos Ilhéus);
Porto Seguro (Capit. de Porto Seguro); Espírito Santo e Nossa Senhora da
Vitória (Capit. do Espírito Santo); São Vicente (antes da
criação da Capitania); Todos os Santos ou Porto de Santos ou
Santos, Santo André da Borda do Campo, cujos habitantes foram
transferidos para São Paulo do Campo de Piratininga, Nossa Senhora da
Conceição de Itanhaém (Capitania de São Vicente).
Os governadores gerais
não tinham a mesma prerrogativa dos donatários para criarem
vilas, podendo fazê-lo somente por expressa ordem real, o que ocorreu na
fundação de Salvador, em 1549, por Tomé de Sousa; em
São Sebastião do Rio de Janeiro, em 1565, por Estácio de
Sá; Filipéia de Nossa Senhora das Neves, depois Paraíba
(hoje, João Pessoa), em 1585, pelo ouvidor Martim Leitão;
São Cristóvão do Rio de Sergipe, em 1590, por
Cristóvão de Barros; e Natal, no Rio Grande, no fim do
século, e que teve, apenas em 1611, a sua Câmara. Essas cidades
litorâneas acompanharam as respectivas conquistas regionais, mas o desenvolvimento
de São Paulo do Campo de Piratininga, porta do Sertão, teve um
progresso autônomo[27].
O município brasileiro
nasceu autônomo e seguiu o modelo do município português,
não sendo, portanto, uma mera corporação administrativa. O
período áureo da autonomia municipal brasileira ocorreu à
época das Câmaras coloniais, logo depois sobrevieram a
miúda interferência régia e a tutela imperial[28].
As municipalidades brasileiras, distantes dos negócios do reino, foram
organizadas conforme originariamente estipularam as Ordenações
Afonsinas (1446), mantidas as linhas gerais nas Ordenações
Manuelinas (1514) e nas Ordenações Filipinas (1603).
No Brasil, apesar de vigentes,
as Ordenações Afonsinas e as Manuelinas não foram
aplicadas, mas as Filipinas tiveram amplo curso até a Lei de 1º de
outubro de 1828, ou “Regimento das Câmaras Municipais do
Império”, portanto após a independência.
Interessante anotar que os
legisladores não criavam os concelhos, nem inventavam municípios,
mas os reconheciam, dando-lhes personalidade jurídica.
As Câmaras municipais
seriam compostas dos juízes pedâneos, seus presidentes natos, e de
vereadores eleitos pelos homens bons, vale dizer pelos cidadãos que
haviam ocupado cargos da municipalidade ou governança da terra, espécie
de nobreza constituída em classe e ciosa dos seus privilégios[29].
Dessas Câmaras saíam os representantes do terceiro estado nas
Cortes Gerais. Algumas Câmaras brasileiras se fizeram representar.
Insatisfeitas com as
atribuições legais, elas se arrogaram outras. As reuniões das
Câmaras de certas regiões (São Paulo e Minas Gerais)
tomavam a feição de Cortes e, em Minas, chegou-se a usar esse
nome. Elas promoviam a guerra e faziam a paz com os gentios, decretavam a
criação de arraiais, convocavam juntas para discutir e deliberar
sobre negócios da capitania, exigiam a presença de governadores
no paço da Câmara para discutir negócios públicos,
chegando a substituir governadores até que a metrópole tomasse as
providências cabíveis. Houve grande conflito entre as
Câmaras e as demais autoridades, demorando para que a metrópole
conseguisse circunscrever os municípios aos assuntos de sua
atribuição local.
Os oficiais da Câmara
(juiz, vereadores, escrivão e procurador), eleitos[30] de três em três anos:
reunido o conselho, os homens bons da terra e o povo, o juiz lhes pedia que
nomeassem seis homens para eleitores. A eleição[31]
era feita em escrutínio secreto, para que uns não soubessem quais
os nomeados pelos outros. Apurados os votos pelo juiz e vereadores, eram
proclamados os seis mais votados, os quais, divididos em três turmas de
dois cada, elaboravam em cada turma um rol dos oficiais da Câmara, sendo
eleitos e registrados em uma pauta os mais votados. Assinada e fechada a pauta,
o juiz da eleição (geralmente o corregedor, o ouvidor ou o juiz
de fora, formava três pelouros para juízes, três para
vereadores, e assim para cada ofício[32].
Segundo as
Ordenações inúmeras eram as atribuições dos
vereadores: verificar os bens do concelho; promover a arrecadação
de rendas; vigiar o estado dos caminhos, portos, fontes, calçadas e
muros; tomar as contas dos tesoureiros; julgar alguns processos; acompanhar o
andamento de obras. O juiz ordinário, ou do lugar, exercia a
administração da justiça local através das vereações.
Sua competência criminal limitava-se aos pequenos furtos e
injúrias verbais. Em grau de recurso, julgavam as
apelações da almotaçaria, isto é, do
almotacé, fiscal de preços, tabelas, pesos, medidas e da limpeza
urbana[33].
O Senado da Câmara[34]
era uma modalidade da Câmara municipal e floresceu na Bahia, em
São Luís do Maranhão, em Olinda e Belém, sendo
criado no Rio de Janeiro em 11 de março de 1757. Teve uma esfera de
poder limitada, mas também se arrogou em atribuições que
invadiam a esfera dos governadores e até da Corte em Lisboa. Os exemplos
maiores de insubmissão ocorreram em Belém e em São
Luís[35].
O Senado da Câmara assumiu
funções políticas além das de ordem econômica
e local, originariamente a ele atribuídas. João Francisco Lisboa
anota com muita razão, assevera Rocha Pombo, que o imenso poder que
tiveram muitas Câmaras é um dos fenômenos mais
extraordinários que oferece a história do regime colonial.
Qual seria a
explicação desse fenômeno? J.F. Lisboa rejeita
várias teorias, dentre elas a de que a tendência refletiria a
metrópole, onde a instituição havia ressurgido, na metade
do século XIV, das tradições romanas, decaindo e
anulando-se, em seguida, em toda a Europa com a consolidação da
realeza. Para o historiador maranhense, a explicação estaria no
estado excepcional das colônias, cujos moradores expulsaram os franceses
e os flamengos, além de dominarem os índios. Conquistaram, assim,
pelas armas uma nobreza, que as usurpações dos senados das
Câmaras mantinham. Rocha Pombo elogia os argumentos de J.F. Lisboa, mas
insiste na importância das funções que teve o regime
municipal em toda a Europa depois da dissolução do império
e que «só afrouxou no século XIV. Nem é só na
ordem administrativa local que se viriam reproduzir aqui na colônia
instituições decadentes, ou mesmo já envelhecidas ou
mortas lá no reino: na esfera do direito, dos costumes, das
idéias, do culto, etc., o mesmo fenômeno poderia ser
observado»[36].
O Senado da Câmara, qualquer seja a explicação, tinha um
poder muito extenso, tanto no domínio português quanto no
espanhol, e os exemplos do exercício desse poder ocorreram contra o
governadores e até contra a Coroa.
No paço do Senado da
Câmara, como nas repúblicas italianas da Idade Média [ou no
fórum romano], centralizava-se a vida local, com a
celebração dos atos públicos, a posse das autoridades da
capitania ou do distrito, o registro dos títulos dos
funcionários, a reunião do povo para exercer o seu direito de
representação ou de queixa[37].
Ao instalar-se uma Câmara,
celebrava-se a cerimônia do levantamento do pelourinho, símbolo do
poder municipal, na praça fronteira ao edifício onde ela ia
funcionar. As populações ansiavam esse alto predicamento que lhes
assegurava a autonomia civil. Entusiasmavam-se pelo papel que assumia na vida
do País, nunca compreendido como uma colônia ou feitoria da
metrópole[38].
Algumas referências aos
Municípios e às Câmaras coloniais são
indispensáveis e envolvem temas de forte conotação
contemporânea, como a citada projeção da
criação de um novo império, as
representações à Coroa pelo bem da terra com a
nomeação de procuradores (mandato imperativo).
Com as Câmaras concorria
diretamente o povo. Em todas as questões graves intervinha este como se
fosse a autoridade suprema sem cujo concurso nenhuma resolução
extraordinária seria autêntica. O governo da metrópole
mandava sempre que em todos os casos excepcionais fossem ouvidos os povos[39].
Outro exemplo interessante
reside na admissão junto às Câmaras dos mosesteres (na
Bahia, desde o início do domínio espanhol), como representantes
das classes populares e encarregados de concorrer com o poder municipal no dar
os regimentos aos ofícios e taxar certos preços de mão de
obra. Em Portugal, havia os tais mesteres, desde 1535, pelo menos. O cargo
passou a ser denominado juiz do povo, descrito por Rocha Pombo como uma
«espécie de tribuno romano, imperando pelo tumulto e pela
arruaça».
«Ao tomar conta do governo
– continua Rocha Pombo – como sucessor de d. Pedro de Melo
[São Luís do Maranhão, meados do século XVII],
estranhou Rui de Siqueira que houvesse ali aquela entidade política, e
inquiriu a propósito os membros da Câmara. Disseram-lhe que
não havia lei alguma criando semelhante cargo, mas que ‘estava nos
costumes da terra’. Proscreveu-o o novo Governador; mas proscreveu apenas
o título, pois que em vez do juiz do povo ficou o Procurador do povo,
com as mesmas funções». «No Rio de Janeiro, a
ingerência direta da opinião nas coisas do governo era ainda mais
formal. Os Procuradores do povo constituíam uma verdadeira corporação,
que se formava sempre que os negócios públicos o exigiam»[40].
As velhas Câmaras
guardariam, tudo indica, um poder maior do que hoje ostentam. Os vereadores,
pelo menos até independência, não tinham por que discutir a
autonomia do município, nem a descentralização administrativa,
pois tinham consciência de ter um governo próprio dirigido aos
peculiares interesses da comuna[41].
Na verdade, com o século
XVII, e vigência das Ordenações Filipinas, as
municipalidades brasileiras assumiram um novo ordenamento jurídico. Os
municípios continuaram com as atribuições de cuidar dos
assuntos de ordem local, de natureza administrativa e policial, e até
alguns judiciários.
Desde 1696 apareceram, no
Brasil, os juízes de fora[42],
nomeados pelo Rei, para os municípios mais importantes, em
substituição aos juízes ordinários, competindo-lhes
presidir a Câmara. Os demais funcionários municipais passaram,
também, a ser nomeados: os juiz de vintena, os almotacés e
quadrilheiros.
As Câmaras baixavam
posturas e editais. De seus atos havia recurso para autoridades superiores, o Conselho
Ultramarino, os corregedores de comarca, ouvidores-gerais ou da própria
comarca.
Há divergência
entre os historiadores a respeito da autonomia das Câmaras no
período colonial. Enquanto João Francisco Lisboa a exalta,
Capistrano de Abreu, Viveiros de Castro e outros a contestam[43].
No século XVII, com a
conquista do Norte, foram criadas as povoações de Fortaleza (vila
somente muito mais tarde), São Luís (Câmara em 1619) e
Nossa Senhora de Belém; e com a conquista do Sul, surgiram municípios,
em donatarias ou Capitanias reais: Paranaguá, São Francisco do
Sul, Santo Antônio dos Anjos da Laguna, Curitiba.
Para a compreensão do
papel e da importância dos municípios e das suas câmaras
durante o século XVII, no Brasil colonial, é importante anotar
que algumas concessões foram feitas às Câmaras, em
comemoração à vitória contra os holandeses, em
Salvador. Privilégios aos membros da Câmara dessa cidade foram
outorgados e, em 1644, foi confirmada a criação de um juiz do
povo, cargo extinto em 1713.
Significativo, outrossim, o fato
de que os municípios foram mantidos na zona transitoriamente ocupada
pelos holandeses no Nordeste[44].
No século XVIII, tivemos
o mais prolongado dos dissídios municipais (a Guerra dos Mascates),
justamente porque o Senado da Câmara de Olinda vetara que os comerciantes
pudessem integrar a Câmara da vila de Recife; a
consolidação das cidades mineiras, depois da Guerra dos Emboabas,
para consolidar a pacificação; a criação de
municípios nas fronteiras do Sul e do Norte. No Sertão,
também, se buscou assegurar o povoamento luso-brasileiro, com a
forçada secularização das aldeias de indígenas
administradas por sacerdotes, muitas transformadas em vilas. Isso já se
deu ao tempo do Marquês de Pombal, quando foram reguladas as
relações entre Governadores e Câmaras. Essas já
estavam em decadência, como órgãos de
deliberação livre, tolhidas de diversas formas pela
ação fiscalizadora de órgãos metropolitanos ou
coloniais, administrativos ou judiciais[45].
A discussão sobre o
município no Brasil colônia não se resume,
tão-somente, ao problema da sua autonomia e ao da sua expressão
como poder, nem a respeito da reminiscência curiosa nele de alguns
institutos do Direito Público Romano, na longa caminhada do
município português, de origem romana com posteriores
influência visigótica e muçulmana. Os historiadores e
sociólogos discutem, também, o caráter democrático,
ou não, daquelas instituições, além de seu
surgimento espontâneo ou artificial.
Dentro desse quadro, Oliveira
Viana contribui de maneira significativa. Ele sustenta que no Brasil,
até 1822, houve o regime do Estado-Império e que todos os
funcionários da alta administração, mesmo local,
não eram eleitos pelo povo da Colônia. As Câmaras municipais
não teriam sido organizações democráticas, sim
oligárquicas e aristocráticas. Nada teriam que ver com os
“concelhos de aldeia” peninsulares, da época foraleira. As
nossas Câmaras não teriam tido, na economia administrativa
colonial, qualquer sentido fisiológico, orgânico, estrutural.
«Eram
órgãos expletivos ou artificiais, para aqui trazidos e aqui
armados como cousas importadas, sem correspondência orgânica com a
estrutura da sociedade colonial - que não os exigia. O que esta pedia -
como centro de autoridade e ordem - era o capitão-mor regente, senhor
todo-poderoso das ‘vilas’ e
‘povoações’»[46].
O povo não teria tido
qualquer participação. Os homens bons, tantas vezes referidos,
que eram os eleitores e os elegíveis, formariam uma aristocracia. Seus
nomes estavam inscritos nos Livros da Nobreza, existentes nas Câmaras.
Somente eles poderiam ser eleitos: grandes proprietários rurais,
residentes nos domínios (engenhos e fazendas) e dos comerciantes ricos,
residentes nas cidades. Os elementos da classe dirigente apareciam apenas nos
dias de gala, de festividades aldeãs, ou nos dias da reunião da
Câmara para efeitos de deliberação ou
administração. A teoria de Oliveira Viana reside na
verificação de que na cidade do interior habitava uma
espécie de plebe desqualificada (alfaiates, mercadores de
balcão). No campo, ficavam os ricos. A situação
alterar-se-ia nas cidades mercantis da costa ou nas regiões mineradoras.
Nós nunca tivemos,
– afirma Oliveira Viana – nem conhecemos o governo direto do
povo-massa; as assembléias populares do antigo direito foraleiro
já haviam desaparecido com as primeiras Ordenações. Quando
fomos descobertos e colonizados, já dominava a aristocracia dos
‘homens bons’. Eram eleitos pela nobreza local - e não pelo
povo-massa, pela “gente mecânica” (artesãos,
serviçais, criados, jugadeiros, homens da lavoura, do arado, da enxada e
da foice)[47].
Em suma, os elementos da
população das vilas, termos e comarcas, que chamamos, realmente,
hoje povo estavam excluidos praticamente - e também legalmente - da
incumbência de concorrer para a constituição dos poderes
públicos municipais - como eleitores, e também do próprio
exercício destes poderes - como representantes. Durante cerca de 300
anos, não colaboraram portanto, nem podiam colaborar, na
administração local -nem como eleitores (jus sufragii), nem como titulares
qualificados (jus honorum)[48].
Oliveira Viana, no entanto, aponta uma exceção democrática
na vila de Piratininga, onde o povo, efetivamente, teria exercido como plebe,
as funções reservadas em outras paragens do mundo colonial
à nobreza de sangue e à nobreza da terra - à nobreza dos
pelouros.
Em Piratininga, o povo aparece
com seus Procuradores reclamando, protestando, ameaçando, reivindicando
direitos ou pedindo providências de interesse local. A
explicação talvez esteja nos bandeirantes, os quais sempre
estavam fora da cidade. Eram eles, os bandeirantes, da nobreza guerreira,
não da riqueza. Aristocratas guerreiros, não plutocratas. Fora da
vila, os bandeirantes deram espaço aos homens da “classe
mecânica” (alfaiates, ferreiros, carpinteiros, pintores,
pedreiros), abaixo da qual ainda havia a “classe operária”
(«informa e rudimentar, representada pela plebe ínfima e
desclassificada dos mamelucos e carijós vagabundos»). Piratininga
foi um exemplo de “aldeia agrária” em funcionamento, como
ainda se veria nos pueblos
hispânicos, nas gemeinden da
Suiça ou nas townships
anglo-saxônicas do povo e do velho continente. O povo paulistano teve,
como os primitivos “burgos” saxões da fase
pré-nórdica, uma escola de educação
democrática, de formação da sua consciência
pública e do seu sentimento político[49].
As Câmaras (pequenas
comunidades autônomas) não eram, de acordo com o escritor
fluminense, uma democracia, pois não teriam nascido do povo-massa, eram
criações oficiais, ordenadas mediante cartas régias ou portarias
do Governador. Da “povoação”, assim fundada, surgia
mais tarde, conforme o progresso da população, a
“vila”, com todo o seu aparelhamento administrativo.
Com a independência do
Brasil, grande redução sofreram os municípios em sua
autonomia. As novas Câmaras, previstas na Constituição de
1824, para as cidades e vilas, reguladas pela lei de 1º de outubro de
1828, perderam as antigas funções judiciais, já reduzidas
no regime colonial pela nomeação de juízes de fora pela Coroa.
Passaram a ser meras corporações administrativas e somente podiam
propor às assembléias provinciais a legislação
atinente à polícia e à economia municipais. Com isso,
perderam os municípios a antiga condição
judiciária, que lhes outorgara a legislação colonial.
Mesmo com tal
redução, as Câmaras tiveram um papel relevante no
espírito da elaboração da Carta de 1824 [50],
pois como é conhecido, o projeto da Constituição foi
expedido a todas as Câmaras Municipais do Império, para receber
sugestões e possíveis emendas. A do Rio de Janeiro propôs
que o projeto se transformasse em Constituição, no que foi
acompanhada por quase todas as outras. A vila paulista de Itu, por
influência do Padre Diogo Antônio Feijó, apresentou críticas
e emendas.
Em função dessa
consulta e de seu resultado, o Imperador atendendo ao voto dos legítimos
representantes da vontade popular, desistiu de convocar uma nova constituinte e
outorgou o projeto como Constituição do Império do Brasil[51].
Tenhamos presente que o Imperador, ao mandar observar a
Constituição Política do Império (Carta de Lei de
25.3.1824) se refere expressamente a
«... que
tendo-Nos requerido os Povos deste Império, juntos em Câmaras, que
Nós quanto antes jurássemos e fizéssemos jurar o Projeto
de Constituição, que havíamos oferecido às suas
observações para serem depois presentes à nova
Assembléia Constituinte ...».
Aliás, a Ata da
Aclamação do Imperador (12.10.1822) está repleta de
referência às Câmaras das cidades de diversas
províncias, sendo mesmo subscrita, na sua quase totalidade, por
Vereadores e Procuradores das vilas.
A propósito das
Câmaras, a Constituição de 1824 dispunha que elas
existiriam em todas as cidades e vilas, então existentes, e
também nas que se criarem no futuro, competindo-lhes o governo
econômico e municipal (art. 167). E que seriam eletivas, compostas do
número de vereadores, que a lei designar, sendo presidente o que
obtivesse o maior número de votos (art. 168). Uma lei regulamentaria o
exercício das funções municipais, formação
das posturas policiais do município, aplicação de suas
rendas e disporia sobre as atribuições (art. 169).
O Ato Adicional, Lei nº 16,
de 12 de agosto de 1834, que alterou a Constituição do
Império, manteve a preeminência das Províncias, mas
determinou a competência das Assembléias Legislativas Provinciais
para legislar sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas
das Câmaras; sobre a fixação das despesas municipais,
podendo as Câmaras propor os meios de ocorrer às despesas dos seus
municípios; sobre a repartição da
contribuição direta pelos municípios da Província e
sobre a fiscalização do emprego das rendas municipais; e, ainda,
sobre a criação e supressão dos empregos municipais. A Lei
nº 105, de 12 de maio de 1840, interpretou alguns artigos daquela reforma
constitucional, restringindo a autonomia municipal alargada pelo Ato Adicional.
A já referida Lei de
1º de outubro de 1828, que deu nova forma às Câmaras
Municipais, marcou suas atribuições e processo para a sua
eleição, chamada Regimento das Câmaras Municipais do
Império, esteve em vigor durante todo o Império, até 1891.
Substituiu, portanto, as Ordenações do Reino, cujos dispositivos
não mais valiam em face da Constituição de 1824. O art. 24
daquela lei diz tudo, em relação à perda da
importância municipal, conforme já mencionado:
«As
Câmaras são corporações meramente administrativas, e
não exercerão jurisdição alguma contenciosa».
O Título III da
Constituição Republicana (1891) “Do
Município”, tem apenas um artigo:
Art. 68. «Os
Estados organizar-se-ão por forma que fique assegurada a autonomia dos
municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse».
A Federação estava
sendo implantada. A crítica à centralização do
regime anterior não prestigiou aos municípios, porém aos
estados-membros. Algumas idéias do projeto originário e dos
decretos da proclamação da república foram suprimidas,
como a de eleição dos funcionários municipais e o direito
de voto e elegibilidade dos estrangeiros residentes no município.
Não obstante o resultado final, os debates no Congresso revelaram a
preocupação de a Federação ser funesta à
organização municipal. O resultado final não prejudicou a
defesa das prerrogativas municipais. João Barbalho pode escrever em
comentário ao texto constitucional:
«E esta
entrega dos negócios municipais, sem exceção, aos
próprios munícípes é não somente
lógica, num regime federal representativo, como é benéfica
e de salutares efeitos. Esta gestão independente e autonômica
é própria dar maior incremento à vida local. Sentindo os
munícipes que realmente esta depende só deles, que são
assim senhores e árbitros dos negócios municipais, desprendem-se
da inércia e indiferença, de que do contrário se deixariam
possuir, e atiram-se com sério empenho à atividade e trabalho em
prol desses interesses, cuja satisfação aproveita tão
intimamente a sua localidade, e mourejam por mantê-la próspera,
por melhorá-la. ora, o município é uma miniatura da
pátria, uma imagem reduzida dela, é nas cousas políticas,
como já o disse alguém, o primeiro amor do cidadão. Esse
amor, esse aferro ao torrão natal, ao círculo das
relações de vizinhança, de contigüidade, de
comunidade de interesses, engendra o espírito cívico. a autonomia
local o desenvolve, o engrandece, o nobilita. E esse patriotismo local, de si
mesmo sereno, intenso, duradouro, é a raiz do patriotismo nacional.
É erro, pois, cercear essa autonomia. Seria mais que erro mesmo, um
verdadeiro atentado, se prevalecesse na República o sentimento vesgo,
desconfiado, tacanho, esterilizador, que na monarquia atrofiou o elemento
municipal.
A história
ensina que os países de liberdades municipais são os de maior
resistência à tirania. É lição para
aproveitar-se»[52].
A Constituição de
1934 deu ênfase à autonomia municipal, apesar de inserir a instituição
municipal nos Estados-membros, os quais deveriam respeitar aquela autonomia
(art. 7, “d”). Determinou que os municípios seriam
organizados de forma que lhes ficasse assegurada a autonomia em tudo quanto
respeite a seu peculiar interesse, especialmente quanto à eletividade do
prefeito e dos vereadores, a decretação de seus impostos e taxas,
como a sua arrecadação e rendas, bem como a
organização dos serviços municipais (Art. 13). Os poderes municipais,
dessa forma, foram enumerados como os da União e dos Estados. No regime
constitucional precedente, o da República velha (1891-1930), de excesso
de federalismo (chamada de política dos governadores) os
municípios foram muito cerceados. Interessante registrar que no famoso
anteprojeto de Constituição, elaborado por comissão
geradora de inúmeras propostas revolucionárias, discutiu-se a
idéia de constituir as Câmaras municipais de representantes das
classes profissionais:
«Os
Conselhos municipais poderão ser constituidos mediante
representação de classe. O Poder Executivo, porém,
será exercido por um prefeito, eleito por sufrágio igual, direto
e secreto (art. 88 do cit. anteprojeto)»[53].
A Constituição de
1937, outorgada depois de um golpe de estado, oferece vários paradoxos.
Acoimada de fascista, na verdade não o é, refletindo,
tão-somente, a tendência da época de Estados fortes,
além da repercussão tardia de uma ditadura positivista, que
não vingara nos primeiros momentos da república, apesar da
força de seus propagandistas. Não é possível saber
se era, ou não, um bom instrumento de governo, porque, a rigor, jamais
teve vigência, apenas inaugurando uma ditadura, pois seu último
dispositivo acenava submetê-la a um plebiscito que jamais foi realizado.
Sua contribuição para a questão municipal está na
idéia de os municípios poderem agrupar-se para a
instalação, exploração e
administração de serviços públicos comuns e tais
agrupamentos seriam dotados de personalidade jurídica (art. 29). O Presidente
da República seria eleito por um colégio eleitoral, do qual participariam
eleitores designados pelas Câmaras Municipais (art. 82, “a”).
Na Constituição de
1946, como já assinalado, de concepção liberal arraigada
do pós-guerra, a idéia municipalista ressurgiu com força,
embora sempre atrelando o município ao estado-membro da
federação, vale dizer, impossível a existência de
unidade federada sem vida municipal. Essa linha foi mantida nas Cartas de 67 e
na Emenda Constitucional de 1969.
Na Constituição de
1988, o município integra a Federação:
«A
República Federativa do Brasil é formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito
Federal» (art. 1).
«Cada
município reger-se-á por uma lei orgânica aprovada por dois
terços dos membros da respectiva Câmara Municipal, devendo o seu
conteúdo observar o disposto na Constituição do Estado
membro, onde se situar, e a Constituição Federal, além de
determinados preceitos que essa última lhe impõe» (art.
29).
Dessa maneira, o Estado
brasileiro impõe aos municípios o seu próprio modelo
político, fundado na representação política
(Câmara de vereadores) e na eleição majoritária do
chefe do poder executivo federal (prefeito), evidente a analogia com o
Parlamento e com o Presidente da República. Semelhantes às do
Congresso, igualmente, as funções legislativas e fiscalizadoras
da Câmara de vereadores. Não há justiça municipal e
o prefeito tem o foro privilegiado do Tribunal de Justiça do
Estado-membro, a quem compete julgá-lo (no Brasil, não obstante a
grande parte do ordenamento positivo seja nacional, vale dizer federal,
há duas justiças, a federal e a de cada um dos Estados-membros).
O sistema de controle das contas municipais é, também, semelhante
ao das contas da União: a fiscalização é exercida
pelo Legislativo (Câmara Municipal), mediante controle externo, e pelo
controle interno do próprio Executivo. A Câmara Municipal é
auxiliada no controle externo pelo Tribunal de Contas do Estado. Enfim, o
Município da Constituição brasileira é uma
cópia menor, uma miniatura, do Estado, e como ele abre duas
exceções ao regime representativo: a iniciativa popular de
projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade
ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos,
cinco por cento do eleitorado; e a possibilidade de questionar-se a
legitimidade das contas municipais, as quais ficarão durante sessenta
dias, anualmente, para exame e apreciação, à
disposição de qualquer contribuinte (note-se a
reminiscência das origens do sistema liberal, quem fiscaliza ou quem se
representa é o proprietário ou quem paga impostos). A autonomia
municipal reside em: legislar sobre assuntos de interesse local; suplementar a
legislação federal e a estadual; instituir e arrecadar os
tributos de sua competência (propriedade predial e territorial urbana;
transmissão inter vivos de bens imóveis; serviços de
qualquer natureza); criar, organizar e suprimir distritos, observada a
legislação estadual; organizar e prestar, direta ou
indiretamente, os serviços públicos; manter programas de
educação pré-escolar e de ensino fundamental, com a
cooperação técnica e financeira da União e do
Estado, também, com esse auxílio, prestar serviço de
atendimento à saúde; promover a proteção do patrimônio
histórico-cultural local, observada a lei e a fiscalização
federal e estadual. O Município poderá constituir uma guarda
municipal destinada à proteção de seus bens,
serviços e instalações, não, todavia, para exercer
funções de polícia de segurança ou de
trânsito. Os Estados membros poderão, em face de determinadas
situações, intervir em “seus municípios”.
Desde 1967, é
possível instituir regiões metropolitanas, constituídas
por municípios, que façam parte da mesma comunidade
sócio-econômica. Então, a sua criação
dependia de lei complementar da União federal, mas com a Constituição
de 1988, a competência é dos Estados membros e, além dos
municípios, o conceito de regiões metropolitanas abrange
aglomerações urbanas e micro regiões,
«constituídas por agrupamentos de municípios
limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e
a execução de funções públicas de interesse
comum» (art. 25, § 3).
Os estados-membros podem
intervir nos municípios. As leis e atos normativos municipais
estão sujeitos ao controle de constitucionalidade em face da
Constituição do estado, onde o município estiver situado.
Toda essa seara histórica
do município no Brasil, da sua origem
romana-visigótica-portuguesa até a admirável
experiência no Brasil colonial e sua paulatina perda de autonomia e
importância a contar da independência, bem como sua
problemática nas vicissitudes republicanas, tem por objetivo demonstrar
a existência de um quadro singular, no qual se proclama a autonomia do
município, explora-se a sua força política para fortalecer
o poder central, mas ao mesmo tempo se exerce um domínio sobre a
entidade municipal.
O município romano foi
uma Roma pequena e teve instituições políticas
assemelhadas. Os concelhos medievais parecem amoldar-se ao sistema dos governos
feudais, embora fossem também uma forte reminiscência do
município romano mais o direito local e visigótico, sem
prejuízo, na península ibérica, da influência
muçulmana.
No Brasil - colônia o
município adquiriu importância extraordinária, chegando a
concorrer com o poder central, enquanto foi útil para a Coroa na defesa
de seus territórios. Depois, pouco e pouco, o Estado foi restringindo a
ação municipal, até tolhê-la em definitivo.
Quando a independência foi
proclamada, voltaram os municípios a garanti-la e a constituir o Império
para, logo em seguida, o governo restringir a sua autonomia, a ponto de a
propaganda republicana erigi-la como uma das suas bandeiras políticas. A
República brasileira veio, todavia, com o federalismo e os
municípios foram atrelados aos Estados-membros.
E o Brasil republicano passou a
uma ciranda, em que a União (governo central), o Estado-membro e
município dançam em uma combinação de duplas que se
destacam, conforme haja mais ou menos federação. Quando a
Federação se afirma (1891 e 1946), cresce o Estado-membro e a
dupla União e município se enfraquece; quando se acentua a
centralização, destaca-se a União, enfraquece-se o Estado
e pode o município perder completamente o seu significado (1937 - Estado
Novo) ou sobreviver durante algum tempo em sua autonomia (1934). Se a
federação míngua quase que completamente,
substituída pelas idéias de segurança e desenvolvimento,
transposição do lema positivista da “ordem e
progresso”, os Estados perdem a importância e o município
pode dançar a dança hegemônica com o governo central (1967
e 1969).
Foram precisos mais de cem anos
de república para que o município fosse reconhecido como membro
da federação brasileira:
Art. 1 «A
República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito ...».
Art. 18 «A
organização político-administrativa da República
Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal
e os Municípios, todos autônomos nos termos desta
Constituição».
De nada adiantou ser o
município um ente da Federação, pois ele continua sob o
domínio ou da União ou dos estados-membros, em uma ciranda
curiosa, embora seja maior a sua independência, paradoxalmente, quando o
centro se fortalece e os estados-membros se fragilizam.
A situação
institucional do município no Brasil é, portanto, paradoxal, uma
vez que cantado em prosa e verso como o lugar onde a democracia é
possível, consagrada formalmente a sua autonomia, erigido em membro da
Federação, e, no entanto, a Constituição o
restringe, atrela-o ao estado-membro, submete-o à Justiças
federal e estadual, condiciona-o financeiramente à União e pela
representação política liberal ilude o povo que ali habita
com a técnica eleitoral de criar representantes, nos três
níveis: o municipal, o estadual e o federal. Pronto e o povo do
município é iludido, ficando nas mãos das casas dos representantes
(a Câmara dos vereadores, as Assembléias Legislativas e a
Câmara Federal). A participação dos munícipes se
restringe a eleger vereadores e ajudar a eleger parlamentares federais e
estaduais, em alguns casos sequer são homens do próprio município
(no Brasil, a eleição não é majoritária nos
distritos, mas proporcional pelas legendas partidárias) de maneira que a
técnica liberal, dita democrática, exacerba o domínio
sobre o povo nos municípios.
Cabível uma analogia. O
povo no município, mesmo elegendo periodicamente o seu prefeito, ajuda a
compor a representação política, por essa
abstração técnica do liberalismo, mas é que como
fosse uma cidade dominada de fora. O município é usado para a
defesa, para a arrecadação de tributos, para trabalhar e produzir,
porém é insignificante sua participação no poder, o
qual vem do centro e de fora. Os munícipes, como a plebe, está
à mercê das leis dos outros, a lei municipal, além de
ditada por representantes, incide sobre temas de menor expressão. O povo
(os munícipes) não tem um poder efetivo e está submisso e
tolhido pelo poder dos outros (o patriciado).
A analogia parece caber bem na
tradição histórica do município como no contraste
e, até, no confronto entre as instituições naturais do
povo e a representação política de feição
liberal. É como se o povo do município fosse a plebe e as
instituições liberais do Estado nacional representasse a
opressão por intermédios de artifícios e
abstrações, que retiram do município a sua verdadeira
autonomia, submetendo-se o povo às leis vindas de fora.
Diante dessa
situação, pode-se vislumbrar o papel do defensor do povo no
município.
A permanência do
município na contemporaneidade demonstra a sua força. É o
lugar onde a democracia pode realizar-se, mas isso parece frustrar-se diante do
sistema liberal de representação política.
Restam duas
situações hipotéticas. A do fim do Estado nacional ou o da
sua fragilidade.
Se o Estado nacional restar
enfraquecido ou mesmo desaparecer, a idéia do fortalecimento do
município é correlata à defesa do povo. Aí entra o
defensor, o tribuno, a instituição capaz de resistir diante tanto
do Estado evanescente como em face de forças hegemônicas vindas de
fora.
Parece sintomático que
essa discussão seja colocada justamente quando o Estado Nacional,
Territorial, Soberano, o Estado Moderno, enfim, está a esvair-se diante
da globalização econômica, da formação de grupos
supranacionais e da comunicação veloz, que aproxima os povos e a
cidades, independentemente e mesmo à revelia dos aparelhos estatais.
O Brasil mesmo se compromete a
buscar a integração econômica, política, social e
cultural dos povos da América Latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de
nações (art. 4, parágrafo único, da
Constituição).
Não se deve esquecer que
o Estado moderno nasceu absoluto (o príncipe livre das leis - legibus solutos) e as diversas
tentativas de transferir a soberania para o povo não vingaram. O povo
continuou a ser mero elemento material do Estado, ao lado do território
e do governo. A soberania, embora contida pelas leis na projeção
do Estado de Direito (governo das leis e não dos homens), em nenhum
momento afastou-se do seu atributo da incontrastabilidade, inviabilizando as
estruturas supranacionais e até a sociedade das nações.
Quando este Estado, afinal,
parece esmorecer e ruirem-se as suas estruturas artificiais, dentre elas as
fronteiras, é como se um gigantesco prédio desabasse pelas suas
paredes externas e internas ou um fóssil congelado tivesse derretido as
sua embalagem, para do degelo ou da demolição surgir algo que
estava oculto e que sobrevive apesar daquele arcabouço destruído.
Se a teoria da Escola Romanista
estiver certa em relação aos salvados das invasões
bárbaras e do domínio muçulmano, quando as
instituições imperiais romanas ressurgiram, como se nada tivesse
acontecido, algo de semelhante aconteceria agora após a passagem do
Estado-Nação, gerando certo degelo das estruturas estatais, para
o município autônomo reaparecer em todo o seu esplendor humano e
natural.
Perece o Estado nacional
soberano e o que sobra são as cidades, os municípios, onde o
homem e o povo estão situados de maneira natural, concreta e
histórica.
Quando se propõe o regime
democrático, a primeira objeção que se apresenta no Brasil
e, provavelmente, em todos os Estados de significativa expressão
territorial, está na impossibilidade de o povo reunir-se para
autogovernar-se. O que se oporia, então, à idéia
democrática nas comunidades municipais? No Brasil é, justamente,
nas cidades pequenas do interior, onde o povo parece ter consciência
plena de seus problemas e os direitos da cidadania são mais claramente
exercidos. A imensa força brasileira, aliás, vem mesmo é
do interior e não das megalópolis do litoral, sujeitas desde
sempre a influências estrangeiras.
A democracia é
factível a partir das pequenas comunidades, onde o homem simples, com a
sua família e a sua religião, se situa, como membro
partícipe do governo.
A seara histórica do
município brasileiro, com suas complicadas discussões a respeito,
desde Portugal, das origens romanas, ou da sua real ou imaginária
autonomia dos primeiros tempos do Brasil, onde se praticaria, ou não, o
governo do povo, com os seus defensores e outras reminiscências da Roma
democrática, indica uma tendência utópica em
relação ao passado. Se essas generosas projeções
relativas às Câmaras Municipais e sua importância não
corresponderem à verdade histórica ou suscitarem polêmicas,
pouco importa, porque o que interessa é o aproveitamento dessas
idéias para a construção do futuro na América
Latina, sendo certo que o fundamento das utopias, não raro se encontra
também no passado.
Se acaso o Estado nacional
não desaparecer de todo, mas tão somente fragilizar-se, o
defensor do povo poderá compor-se com o regime da
representação, na criação de uma síntese
entre o regime liberal antigo e a democracia direta ou semi-direta,
participativa e com a presença do defensor e do efetivo exercício
de seus poderes tanto em relação à
administração municipal como na resistência às
forças vindas de fora do município.
Quanto os poderes do
defensor do povo, a questão está também na
bifurcação das hipóteses. Se o Estado Nacional desaparecer
e toda a Constituição política for substituída, o
Defensor pode ser inserido dentro de um contexto democrático em tudo
diferente do vigente e seus poderes poderão ser ampliados[54].
Se, no entanto, o Eatado permanecer com a sua Constituição, a
presença do Defensor pode ensejar um novo regime, ainda caracterizado
como uma síntese possível, decorrente do embate entre as duas
forças, a do poder central (representantes da nação) e o
povo municipal defendido pelo seu tribuno.
Na última
hipótese, ao lado dos serviços municipais e dos interesses
próprios dos municípios, onde o Defensor poderá atuar
diante do prefeito, da Câmara dos Vereadores, das políticas
públicas municipais, ajudar na revogação dos chamados
mandatos eleitorais (se implatada a revogabilidade), pode-se considerar a
circunstância de a Constituição brasileira acenar, em
várias hipóteses, com uma participação popular, por
intermédio da qual o defensor poderá agir.
Assim é que, além
do plebiscito, referendo e iniciativa popular das leis, em
relação a que a presença do Defensor poderá ser
relevante, no mínimo na propositura, há na
Constituição uma série de outras previsões de
participação popular, pelas quais o Defensor poderá estar
presente: representação judicial e extrajudicial pelas entidades
associativas de seus filiados (art. 5, XXI); a atribuição aos
sindicatos da defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da
categoria, mesmo em questões judiciais e administrativas (art. 8, III);
a garantia de os empregados de uma empresa elegerem seu representante para entendimento
direto com os empregadores (art. 11); a participação dos
trabalhadores e empregadores nos colegiados dos órgãos
públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários
sejam objeto de discussão e deliberação (art. 10); a
possibilidade de o povo examinar, apreciar e questionar a legitimidade das
contas dos municípios, que ficarão à
disposição dos contribuintes por sessenta dias (art. 31, §
3); o caráter democrático e descentralizado da gestão
administrativa da seguridade social (saúde, previdência e
assistência social), com a participação da comunidade, em
especial dos trabalhadores, empresários e aposentados (art. 194, VII); o
mandado de segurança coletivo, impetrável por partido
político, organização sindical, entidade de classe ou
associação constituída (art. 5, LXX); na
ampliação do espectro da ação popular movida por
qualquer cidadão para anular ato lesivo ao patrimônio
público, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao
patrimônio histórico e cultural (art. 5, LXXIII).
* Presidente da URBS – União dos Romanistas
Brasileiros. Diretor do Centro de Estudos de Direito Romano e Sistemas
Jurídicos da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.
[1] Ver a propósito estudo
de Alceu Amoroso Lima, Política, 4ª ed.,
Petrópolis, Vozes, 1999, 116, cuidando da Teoria Católica das
Revoluções.
[3] Goffredo Telles Júnior, A folha dobrada: lembranças de um estudante, Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999, 462-473.
[4] Refiro-me a interessante artigo
de D. Lucas Moreira Neves,
intitulado “Política e
cidadania se abraçarão”, publicado no jornal “O
Estado de São Paulo”, de 18.9.96, onde ele estabelece as
relações entre a urbs e
a civitas, a política e a
cidadania, bem como onde a política se aprimora como arte,
ciência, prática e estratégia do bem-comum, e
exercício do poder enquanto serviço.
[5] O movimento integralista, por
exemplo, colocava muita ênfase no município. O § 9 do
Manifesto de Outubro de 1932, com que Plínio Salgado fundou o
Integralismo brasileiro, é todo dedicado à questão
municipal em uma projeção corporativista: «O
município é uma reunião de famílias. O homem e a
mulher, como profissionais, como agentes de produção e de
progresso, devem inscrever-se nas classes respectivas, a fim de que sejam por
estas amparados, nas ocasiões de enfermidades e desemprego... Os
municípios devem ser autônomos em tudo o que respeita a seus
interesses peculiares, porque o município é uma reunião de
moradores que aspiram ao bem estar e ao progresso locais ...». Inobstante
o caráter centralizador do integralismo, as Diretrizes integralistas de
1933 estabelecem: «A origem do município na Família torna-o
sagrado, intangível em tudo que disser respeito a seus interesses
peculiares». Mais tarde, no livro Direitos
e Deveres do Homem, 1949, Plínio
Salgado escreveu: «Numa Declaração de Direitos e
Deveres do Homem deverá constar a declaração dos Direitos
dos Municípios, isto é, do grupo local, pondo a salvo os
munícipes contra toda ingerência exorbitante ...».
[6] Dentre os constituintes
municipalistas, José Carlos de
Ataliba Nogueira pregava a restauração do velho
município colonial brasileiro: associação natural e legal
de vizinhos para a realização de todos os serviços comuns.
Ataliba Nogueira sustentava que a origem do município brasileiro
não era nem romana nem portuguesa, mas que nascera em torno das capelas
(cf. Teoria do Município. Revista
de Direito Público, São Paulo, 6, 1968: 7-21). A
propósito, Oliveira Viana não afasta a hipótese de que os
núcleos urbanos nasceram de uma capela
inicial, mas admite outras origens, como um arraial provisório de
feirantes, uma velha fazenda ou engenho, uma aldeia de índios
aculturados, um “pouso de tropeiros”, um “ponto de
travessia”, um “patrimônio”, marcado por uma
reunião esporádica de sitiantes ou posseiros que busquem atrair
cura para os ofícios religiosos (cf. Francisco
José Oliveira Viana, Populações
Meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras.
Introd. de Antonio Paim. Brasília, Câmara dos Deputados, 1982,
397).
[7] Em 15.3.46 foi criada, no Rio
de Janeiro, a Associação Brasileira de Municípios.
[8] Marcelo Caetano, História
do Direito Português. Fontes-Direito Público (1140-1495).
2ª ed. Lisboa, Editorial Verbo, 1985, 67 e segts.
[12] Plínio esteve na
Península Ibérica, como procurator
Caesaris, entre os anos 69 e 73 da nossa era.
[13] Marcelo Caetano, op.
cit., 97; Sanchez Albornaz, Ruina y extensión del municipio
romano en España e instituciones que le reenplazon. Buenos Aires,
1943; idem,
“El gobierno de los ciudades de España del siglo V al X”, in
Estudios sobre los instituciones
medievales españoles. México, 1965; Paulo Merêa,
Estudos de Direito Visigótico.
Coimbra, 1948.
[14] Mário Curtis Giordani, História dos Reinos Bárbaros. II vol., 3ª ed.,
Petrópolis, Vozes, 1993, 33.
[16] Mário Curtis Giordani, História dos Reinos Bárbaros. I - Acontecimentos Políticos. 4ª ed.,
Petrópolis, Vozes, 1993, 105.
[22] Para um estudo do
município no Brasil e sua origem histórica romana, v. João de Azevedo Carneiro Maia, O Município. Estudos sobre
Administração Local. Rio de Janeiro, Typ. de G. Leuzinger e
Filhos, 1883.
[23] Hélio Vianna, História
do Brasil. 15ª ed. revista por Hernâni Donato (14ª ed.
revista por Américo Jacobina Lacombe e por Rosa Maria Barbosa de
Araújo). São Paulo, Melhoramentos, 1994, 77.
[24] Diário de Navegação de Pero Lopes de Sousa
(1530-1532). 2ª ed. crítica do Comandante Eugênio de Castro
(Rio de Janeiro, 1940), vol. I, 350-352, apud
Hélio Vianna, op. cit., 59.
[25] Francisco Adolfo de Varnhagen, História Geral do Brasil: antes de sua separação e
independência de Portugal. Revisão e notas J. Capistrano de
Abreu, Rodolfo Garcia. 10ª ed.integral., Belo Horizonte, Ed. Itatiaia;
São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1981, 165.
[26] Cf. Victor Nunes Leal, Coronelismo,
enxada e voto: o município e o regime representativo, no Brasil.
2ª ed., São Paulo, Alfa-Ômega, 1975, 60.
[29] Quando em função
deliberativa, apenas juiz e vereadores, chamava-se Vereação ou Conselho
de Vereadores, mais tarde Câmara.
As reuniões da Câmara com outras autoridades e os homens bons,
chamavam-se juntas gerais (v. Victor Nunes Leal, op. cit., 60 e Max Fleiuss,
História Administrativa do Brasil).
[30] Já em Portugal, pela
Carta Régia de 12 de junho de 1391, conhecida como
“Ordenações dos Pelouros”, regulamentavam-se as
eleições. Os concelhos deveriam ter uma lista permanente de
pessoas idôneas para o desempenho de cargos municipais e cada nome
deveria ser escrito em um papel (alvará), o qual era encerrado em uma
pequena bola de cera (pelouro), a ser guardada em uma arca (a dos pelouros) a
ser aberta por ocasião da renovação dos quadros municipais
(cf. Sérgio Marcos de Moraes
Pitombo, “Breves notas históricas sobre os concelhos
municipais e seus vereadores”. Comunidades
de Língua Portuguesa. Revista de Cultura. Estudos Jurídicos (do
Brasil para Portugal). São Paulo, 1984, 15-17.
[31] Sobre as eleições
das Câmaras, desde a época colonial até, praticamente, os
dias de hoje, v. Victor Nunes Leal,
op. cit., cap. III,
“Eletividade da Administração Municipal”, 105 e
segts.
[32] Dessa maneira, pelouros de
vereação eram os papéis onde estavam escritos os nomes das
pessoas que deviam servir de juízes, vereadores etc. Assim eram chamados
por serem encerrados em bolas de cera, que tinha a forma de pelouro (bala de
ferro para arma de fogo). O pelourinho, a coluna simbólica da vila,
recebeu esse nome pelo fato de ali abrir-se a arca dos pelouros.
[33] Cf. as referências
às Ordenações em Sérgio
Marcos de Moraes Pitombo, op. cit.;
v. tb. a propósito das importantes funções das
Câmaras, mais relevantes do que as das modernas municipalidades, Victor Nunes Leal, op. cit., 62.
[34] Cândido Mendes de Almeida
anota que a graduação de Senado emergia por dignidade, honra e
reconhecimento outorgável pelo rei, de igual maneira como, antes,
recebera a Câmara de Lisboa.
Cândido Mendes de Almeida, Código
Philipino. Rio de Janeiro, Inst. Philomathico, 1870. 14ª ed., 153, em
nota.
[35] A respeito do «imenso
poder político que se arrogam os senados das duas cidades», v.
textos de João Francisco Lisboa,
transcritos em Victor Nunes Leal,
op. cit., 66 e segts.: «As
Câmaras exerceram imenso poder, que se desenvolveu à margem dos
textos legais e muitas vezes contra eles». V., tb., Caio Prado
Júnior, Formação do Brasil
Contemporâneo-Colônia, 1945.
[36] Cf. Rocha Pombo, História
do Brasil. vol. II. O regime colonial.
São Paulo, Jackson, Inc., 1953, 139.
[38] Rocha Pombo, op. cit.,
141: «A primeira Câmara de São Luís, instalada em
1619, dirigia-se a el-rei desvanecida e grata, falando-lhe no ‘trabalho e
sangue’ com que a terra fôra conquistada; oferecendo-lhe a vida ao
real serviço ‘para fundar aqui um novo
império’».
[41] Cf. Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, op. cit. Acerca da questão da autonomia municipal no Brasil
colônia, há certa polêmica, como se verá adiante.
[42] Juiz-de-fora ou de
fora-aparte era o magistrado imposto pelo Rei a qualquer lugar, sob o
pretexto de que o de fora administra melhor a justiça do que o da
própria localidade.
[43] Capistrano de Abreu escreve: «Nada confirma a
onipotência das câmaras municipais descoberta por João
Francisco Lisboa, e repetida à porfia por quem não se deu ao
trabalho de recorrer às fontes». Mas José Honório Rodrigues, em nota a esse texto,
contrapõe à conclusão de Capistrano diante das atas da
Câmara de São Paulo, a observação de Edmundo Zenha,
diante das mesmas atas: «atualmente é mais fácil andar
certo exagerando com João Francisco Lisboa, que duvidando ou negando com
Capistrano de Abreu» (Edmundo
Zenha, O Município no
Brasil (1532-1700). São Paulo, Ipê, 1948). (cf. J. Capistrano de Abreu, Capítulos de História Colonial
(1500-1800). 5ª ed. Revista, prefaciada e anotada por José
Honório Rodrigues. Brasília, UnB, 1963, 154). Sobre a
posição de Viveiros de Castro ao lado de Capistrano, v. Victor Nunes Leal, op. cit., 69.
[50] No curto período da
volta de D. João VI até 1828, as Câmaras cresceram em autonomia.
Por isso, talvez, tenham apoiado tanto a Constituição de 1824.
Não imaginavam as restrições mesquinhas da Lei de 1828. V.
Victor Nunes Leal, op. cit., 73.
[52] João Barbalho Uchoa Cavalcanti, Constituição Federal Brasileira. Comentários.
Ed. fac-similar. Brasília, Senado Federal, Secretaria de
Documentação e Informação, 1992, 283.
[53] Cf. Ronaldo Poletti, A
Constituição de 1934. Brasília, Fundação
Projeto Rondon, 1986; v. tb. José
Affonso Mendonça de Azevedo, Elaborando
a Constituição Nacional. Belo Horizonte, 1933.
[54] Cf. texto Ronaldo Poletti, “O Tribuno da
Plebe e o Defensor do Povo na Constituição da República
Bolivariana da Venezuela”, apresentado no Seminario di studi Secessione della plebe e Costituzione repubblicana.
L’esempio bolivariano. Roma 15-16 dezembro 2006 (publicado em Diritto @ Storia 6, 2007 = http://www.dirittoestoria.it/6/Memorie/Tribunato_della_Plebe/Poletti-Tribuno-plebe-defensor-Republica-Bolivariana-Venezuela.htm
):
«A Defensoria do Povo tem
a seu cargo a promoção, defesa e vigilância dos direitos de
garantias estabelecidos na Constituição e dos Tratados
Internacionais sob direitos humanos, além dos interesses
legítimos, coletivos e difusos, dos cidadãos. A Defensoria do
Povo será dirigida por um Defensor do Povo designado por um
período de sete anos (art. 280).
São
atribuições do Defensor do Povo:
velar pelo respeito e garantia
dos direitos humanos, investigando, de ofício, ou a requerimento das
partes, as denúncias que chegam a seu conhecimento (art. 281);
velar pelo correto funcionamento
dos serviços públicos, amparar e proteger os direitos e interesses
legítimos, coletivos e difusos, das pessoas contra as arbitrariedades
desvio de poder e erros cometidos na prestação daquele
serviço, interpondo as ações necessárias para
exigir do Estado o ressarcimento aos administrados pelos danos e
prejuízos que lhes sejam ocasionados em razão do funcionamento
dos serviços públicos;
interpor as ações
de inconstitucionalidade, amparo, hábeas corpus, hábeas data e
demais ações ou recursos necessários para exercer as suas
atribuições;
requerer ao fiscal ou fiscala
geral da república para que promova as ações e recursos
cabíveis contra aos funcionários públicos
responsáveis pela violação ou desprezo pelos direitos
humanos;
solicitar ao Conselho Moral
Republicano que adote as medidas cabíveis quanto aos funcionários
responsáveis pela violação ou desprezo aos direitos
humanos;
solicitar ao órgão
competente a aplicação de corretivos e sanções
cabíveis pela violação dos direitos do público
consumidor e usuário;
apresentar, perante os
órgãos legislativos (nacionais, estaduais e municipais) projetos
de lei visando a proteção progressiva dos direitos humanos;
velar pelos direitos dos povos
indígenas e exercer as ações necessárias para usa
garantia e efetiva proteção;
formular, perante os
órgãos responsáveis, as observações e recomendações
necessárias para melhor proteção dos direitos humanos.
Para isto, desenvolverá mecanismos de comunicação
permanente com os órgãos públicos ou privados, nacionais e
internacionais, de proteção e defesa dos direitos humanos.
O Defensor do Povo gozará
de imunidade no exercício de suas funções. Não
poderá ser perseguido, detido, nem acionado por atos relacionados com
atos relacionados com o exercício de sua função. Em todo
caso, ele é jurisdicionado do Tribunal Supremo de Justiça (art.
282). Neste ponto fica clara a analogia, plenamente cabível com a
sacralidade e inviolabilidade do Tribuno da Plebe».