N. 7 – 2008 – Tradizione
Romana
Francisco dos santos Amaral Neto
Universidade Federal do Rio de Janeiro
As fontes romanas no novo Código Civil
brasileiro
Sumário: 1. Introdução.
– 2. As fontes romanas.
– 3. As
fontes romanas no novo Código Civil brasileiro. – 4. A
sistemática do Código. O sistema das instituições
de Gaio e de Justiniano. – 5. A
personalidade. – 6. Personalidade
e capacidade jurídica. – 7. Coisas.
– 8. Obrigações
e contratos. – 9. Propriedade.
– 10. Família. –
11. Sucessão. – 12. A metódica
jurídica.
O novo Código Civil Brasileiro[1]
representa o ato final de um longo processo histórico de reforma e
sistematização do direito civil pátrio. Constitui, por
isso, razão mais que plausível para que os civilistas brasileiros
desenvolvam uma significativa produção doutrinária, que
vá da simples exegese do Código a reflexões mais profundas
sobre o seu sentido e importância no quadro das fontes do direito privado
nacional e sobre a metodologia de realização de sua normas.
Nessas reflexões, impõe-se a que tenha por objetivo o estudo dos
seus arquétipos, em particular a tradição romanista[2],
que é a base do direito civil e da cultura jurídica ocidental.
Nela surgiram princípios, conceitos, categorias, normas e institutos que
hoje constituem as estruturas jurídicas do direito contemporâneo,
que adapta a sua historicidade aos desafios da globalização.
Diga-se de imediato, que não estamos em face de um novo
Código, mas sim, do velho diploma de 1916, de Clóvis
Beviláqua, podado no que tinha de ultrapassado e atualizado pela
inclusão de novos preceitos, que sociedade brasileira vinha reclamando,
como respostas jurídicas a novos problemas surgidos com a
evolução política, econômica, técnica e social,
verificado em nosso país a partir da década de 20, que assinala o
início da modernidade brasileira, e hoje agravados pelos efeitos do
fenômeno globalização[3].
O Código de Beviláqua é produto de uma
formação eclética, em que predomina o direito
reinícola, das Ordenações Filipinas, o direito
francês e o alemão, tendo como base a tradição
romanista. A sua atualização não o desqualifica como
genuíno representante da cultura e da sociedade brasileira. Pelo
contrário, a inserção de novas matérias, como o
direito de empresa e a própria unidade que realiza, das
obrigações, assim como a consolidação da
matéria sobre personalidade, família, propriedade e contratos,
tudo isso resultante de longa e profícua atividade dos advogados e dos
magistrados nacionais, permitem-lhe ser agora não mais o reflexo de
direitos estrangeiros, mais sim um verdadeiro representante da
experiência jurídica brasileira, entendendo-se como tal modus
vivendi jurídico da sociedade brasileira do século XX.
E sendo o Código Civil a fonte principal, mas não
exclusiva, do novo direito privado, é de aceitar-se o estudo da origem
da maior parte dos artigos do Código, a demonstrar a permanência
do espírito e dos preceitos romanos no nosso direito, o que equivale a
dizer que o Código Civil brasileiro é, em grande parte, o direito
romano atual[4].
Escrever sobre as fontes de direito em Roma implica porém, breve
referência à experiência jurídica romana, no seu
processo evolutivo que vai da fundação (séc. VIII a.C.)
até Justiniano (séc. VI d.C.), durante o qual se sucederam
diversas espécies de fontes, em especial, o costume, as leis, os
plebiscitos, os editos dos magistrados, os senatus-consultos, ou respostas dos
jurisconsultos, as constituições imperiais e as
compilações, das quais a mais importante é o Corpus iuris de Justiniano. Ora as
fontes do direito são o modo pelo qual se constitui e manifesta o
direito como vinculante normatividade vigente[5],
o que diz respeito à Teoria do Direito, pois que a teoria das fontes
é determinada pela concepção de direito que se tenha, uma
remete-se à outra e ambas reciprocamente se implicam[6].
Embora no processo evolutivo das fontes no direito romano se
possa distinguir o que hoje chamaríamos de experiência
jurídica consuetudinária, legislativa e jurisprudencial, conforme a base constitutiva do direito seja o
costume, as leis ou a jurisdição, é a segunda o nosso
ponto de referência é o Corpus
iuris civilis, chegado até nós por meio da
tradição romanista (sécs. VI a XX), que permanece como
símbolo e expressão do direito comum vigente no continente
europeu até o advento dos códigos civis da modernidade, de
notável influência no código civil brasileiro de 1916,
particularmente o francês e o alemão.
A expressão fontes do direito tem dois significados: o
poder de produzir as normas jurídicas (fontes de produção)
e a forma de expressão dessas normas (fontes de cognição
ou de conhecimento). As fontes de produção são os poderes,
os órgãos ou os atos criadores desse direito; fontes de
cognição são os modos pelos quais se dá o conhecer
esse direito.
Como fontes de produção jurídica temos, ao
longo das diversas fases políticas da história do Império
Romano, os comícios, o senado, os magistrados, o imperador e os iurisprudentes. São fontes de
cognição ou conhecimento os costumes, as leis, os plebiscitos, os
editos dos magistrados, os senatus-consultos,
as respostas dos jurisconsultos e as constituições imperiais[7].
Temos ainda fontes de cognição ou de conhecimento
extrajurídicas, como as fontes
literárias, que reúnem obras da mais variada natureza, de
escritores, poetas, filósofos, retóricos, gramáticos,
eruditos, padres da Igreja etc.; as fontes
epigráficas, inscrições feitas pelos romanos em
materiais duráveis, como pedra, mármore, madeira, bronze etc.,
com eventual reprodução de textos legais; e as fontes paleográficas, inscritos pelos romanos em pergaminho,
papel, tábuas enceradas, às vezes reproduzindo o conteúdo
de atos jurídicos privados. Objeto de nossa referência, neste
trabalho, são as fontes de cognição, em especial o Corpus iuris civilis, que é a
compilação feita por Justiniano (528-564 d.C.), com a finalidade
de reunir em uma só obra toda a produção normativa romana,
a ciência jurídica e a legislação produzida no arco
de treze séculos (
Reconhecia
Clovis Beviláqua que «o direito civil brasileiro é o
direito privado romano, que sofreu uma primeira modificação em
Portugal, sob o influxo de outro meio, de outras necessidades, da
assimilação de institutos germânicos e canônicos, e,
novamente, recebeu enxertias no Brasil, que foi pedir conselhos e
inspirações a outros guias»[8].
Não é, portanto, de admirar, que dos 1.807 artigos
do Código Beviláqua, mais de quatro quintos, isto é,
1.445, sejam «produtos de cultura romana» ou diretamente
extraídos do Corpus iuris civilis,
ou indiretamente das legislações que da mesma fonte se
construíram, em especial a portuguesa, a alemã, a francesa e a
italiana[9].
Tendo o novo Código Civil 2.046 artigos, e devendo-se o acréscimo
à inserção de um novo livro na parte especial, o Direito
da Empresa, com cerca de 230 artigos, pode-se dizer que, de modo geral, a
presença do direito romano no novo Código é equivalente
à do Código de 1916.
Sendo, todavia, impossível nas dimensões deste
trabalho, referência a todos os artigos que foram apreendidos das fontes
romanas, deter-nos-emos nas disposições básicas dos
institutos fundamentais do direito privado, seguindo a própria ordem do
novo Código, isto é, as pessoas, as obrigações, os
contratos, a propriedade, a família e a sucessão.
Seguindo o modelo de Teixeira de Freitas[10]
e do Código Civil alemão, tem o novo Código Civil
brasileiro duas partes. A primeira, com 211 artigos, distribuídos em
três livros, respectivamente Das
Pessoas (Livro I). Dos Bens
(Livro II) e dos Fatos Jurídicos
(Livro III), é chamada Parte Geral, reunindo os princípios e
normas aplicáveis à generalidade dos atos e das
relações jurídicas, isto é, às pessoas, aos
bens e aos fatos que fazem nascer essas relações. A Parte Especial, por sua vez, divide-se
em cinco livros, Do Direito das
Obrigações (Livro I),
Do Direito de Empresas (Livro II),
Do Direito das Coisas (Livro III),
De Direito de Família (Livro IV) e Do Direito das Sucessões (Livro V), acrescidas de um Livro
complementar, contendo disposições finais e de direito
transitório.
Uma das primeiras manifestações do modelo romano
encontramo-la na estrutura da Parte Geral.
Consagra esta o sistema das Instituições de Gaio
que dispunham, nesse particular que
Omne autem ius quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel
ad actiones[11].
[Todo o direito que usamos,
respeita ou às pessoas, ou às coisas, ou às
ações].
Essa obra, pequeno tratado conciso e elegante do direito privado
romano[12]
foi seguida por Justiniano[13]
e transmitida aos códigos modernos, com exclusão do direito
processual (actiones)[14]
e adaptada à concepção individualista e idealista da
modernidade. O novo Código Civil mantém essa
ordenação geral da matéria jurídica privada,
substituindo porém o individualismo inicial do Código de 1916 por
uma concepção mais social e ética do direito.
A personalidade é a aptidão para a titularidade de
direitos e de deveres. Com a boa doutrina, o novo Código distingue a
personalidade, que é um valor jurídico, da capacidade de direito,
que é a projeção ou a realização desse
valor.
A personalidade civil começa do nascimento com vida; mas a
lei põe a salvo os direitos do nascituro, dispõe o art. 2º
do novo Código.
Mais preciso, nessa matéria, dispunha Teixeira de Freitas
no art. 1º da Consolidação:
«As pessoas consideram-se nascidas, apenas formadas no
ventre materno; a lei lhes conserva seus direitos de sucessão para o
tempo de nascimento».
Ambos os dispositivos reproduzem, com a relatividade e as
transformações decorrentes da evolução
histórica, diversas passagens do Digesto, principalmente D. 1, 5, 26 [15]
e D. 1, 5, 7 [16].
O novo Código Civil brasileiro inicia-se com a disciplina
e proteção dos seres humanos, configurando o que se poderia
chamar de instituto jurídico da personalidade, conjunto de
princípios e regras que protegem a pessoa em todos os seus aspectos da
sua existência e atuação. Reafirma, assim a
tradição romanista, que considerava a pessoa, o homem, como causa
e destinação de todo o direito[17],
o que se reflete, hoje, na Constituição Brasileira, que elege a
dignidade da pessoa humana como princípio fundamental[18],
e no próprio Código Civil, que reconhece a pessoa como titular de
direito e deveres[19].
Personalidade jurídica é a aptidão para a
titularidade de direito. É uma qualidade inerente ao ser humano,
é um valor jurídico que se reconhece aos seres humanos e, por
extensão, aos grupos legalmente constituídos. Tem sua medida e
realização na capacidade, com a qual não se confunde, como
defendia a doutrina tradicional. Personalidade é um valor, um
princípio, enquanto que a capacidade é a sua
projeção no meio jurídico, é a aptidão
concreta para participar de relações jurídicas. Conexo ao
conceito de capacidade de direito temos o de capacidade de fato, que,
diversamente é a aptidão para o exercício dos respectivos
direitos e deveres.
Dada a importância da existência e atuação
das pessoas no mundo jurídico, o direito estabelece-lhes os limites de
sua existência e condições de atuação
(capacidade de fato). Dispõe o novo Código Civil que a
titularidade dos direitos da pessoa humana (não a personalidade)
começa da concepção[20],
extinguindo-se com a sua morte[21].
No caso de morte de pessoas reciprocamente herdeiras, sem que se possa
estabelecer quem morreu primeiro, presumem-se simultaneamente mortos,
não havendo sucessão hereditária. É o instituto da
comoriência[22].
Em Roma, a titularidade de direitos, e uso esta expressão
porque no direito romano não havia a denominação de
personalidade e de capacidade, pressupunha a existência de requisitos
quanto à existência e quanto ao status.
Eram requisitos de existência a) o nascimento com vida, b)
o completo desligamento do ventre materno e c) a forma humana. Protegia-se,
todavia, o concebido ainda não nascido (nasciturus qui in utero est)[23],
reservando-se-lhe os direitos, especialmente sucessórios, que ficavam
dependendo do nascimento futuro. Dizia-se, por isso, que os concebidos se
assemelhavam aos já nascidos (nasciturus
pro iam nato habetur quotiens de eius commodis agitur), sendo-lhe concedida
proteção jurídica especial (curator ventris)[24].
Idêntica disposição encontra-se no novo Código Civil[25].
Eram requisitos de estado: a) status
libertatis, b) status civitatis e
c) status familiae. Significava isso
que, para ser sujeito de direito, a pessoa humana devia ser livre,
cidadão romano e ser chefe de família, o que se projeta no direito
civil contemporâneo, em matéria de legitimação para
a prática de atos jurídicos.
Quanto à capacidade de fato, aptidão para exercer
direitos, praticando atos jurídicos, várias circunstâncias
modificam-na, como a idade, o sexo, a doença, a prodigalidade. O
Código Civil estabelece a idade inferior a 16 anos e a doença
mental como determinantes da incapacidade absoluta[26],
e a idade entre 16 e
O Direito Romano, distinguia, quanto à idade, os impúberes, que ainda não
tinham alcançado a maturidade sexual, fixada, para os homens, aos 14
anos, e para as mulheres aos 12 anos[29],
dos púberes que,
alcançada aquela idade, adquiriam a plena capacidade de agir.
Os púberes tinham no antigo direito romano plena
capacidade de fato, mas a evolução da vida econômica
impôs o limite de 25 anos para os atos jurídicos patrimoniais, de
modo que os púberes abaixo dessa idade só podiam praticar, sem a
presença de um curator, o
matrimônio e o testamento. A plena capacidade de fato se atingia
então aos 25 anos, para a prática de atos jurídicos
patrimoniais.
Quanto ao sexo, a mulher tinha capacidade de fato limitada[30].
Não podia exercer funções públicas nem o poder
familiar (pátrio poder, tutela)[31].
A mulher livre era subordinada ou ao pater
familias, ou ao marido (manus),
ou ao tutor, se sui iuris,
necessitando da auctoritas tutoris
para a prática de qualquer ato patrimonial.
Quanto à saúde, a enfermidade mental privava o
doente de qualquer capacidade de fato[32],
como corria com a loucura nas suas diversas formas, furiosi e mentecapti.
Também os pródigos, aqueles que dissipam os seus bens, tinham
limitada a sua capacidade de fato. Uns e outros subordinavam-se a um curator[33].
No que se refere ao objeto dos direitos, as coisas (res), o novo Código Civil
classifica-as em imóveis e móveis[34],
fungíveis e infungíveis[35],
consumíveis e inconsumíveis[36],
divisíveis e indivisíveis[37],
singulares e coletivas[38],
principais e acessórias[39],
públicos e particulares[40].
O direito romano adotava designações semelhantes,
embora não tivesse uma classificação sistemática
das res, o que se compreende pelo seu empirismo-casuístico, longe da
idéia de sistematização.
Suas principais espécies eram as res mancipi e as res nec
mancipi o que, de certo modo, corresponde à distinção
atual de coisas imóveis e móveis. As res mancipi (imóveis) transferiam-se por meio de ato solene
(mancipatio in iure cessio)[41],
enquanto que as res nec mancipi
mudavam de proprietário pela simples entrega (traditio).
Conheciam, embora sem essa denominação, as coisas
fungíveis (res quae pondere numero
consistunt)[42]
e as não fungíveis, distinção importante em
matéria contratual. O mútuo respeitava às coisas
fungíveis. O comodato, o depósito, o penhor, o usufruto, o uso,
aplicavam-se apenas às coisas infungíveis.
Distinguiam, também, as coisas consumíveis (res quae usu consumuntur) das
inconsumíveis (usufruto e comodato) e as divisíveis (res quae divisionem recepiunt) das
indivisíveis (res quae sine
interitu dividi non possunt)[43],
(servidões, penhor, obrigações) as singulares, as
compostas e as coletivas ou universais[44],
as coisas acessórias, como os animais domésticos, os escravos, os
utensílios agrícolas (instrumenta
fundi), os frutos (fructus), as
benfeitorias (impensae).
Outra distinção romana, hoje de grande
importância, era a das res
corporales e res incorporales
(herança, servidões, obrigações)[45],
as res in commercio e as extra commercium[46],
compreendendo estas as res divini iuris
(res sacrae, res religiosae, res sanctae)
as res publicae e as res communes omnium.
De tudo isso se depreende que, respeitadas as
circunstâncias do tempo e as específicas
contribuições do direito medieval, a disciplina dos bens fixada
no Código Civil é idêntica à do direito romano, e
que os elementos e os conceitos relevantes das fontes romanas fazem parte da
elaboração doutrinária moderna[47].
O sistema das obrigações é a parte mais
interessante do direito romano[48].
É o campo em que a técnica jurídica mais se apurou,
legando à posteridade um dos setores mais desenvolvidos do direito
privado. No Código Civil, é a parte que contem maior
número de prescrições jurídicas, em quase sua
totalidade de natureza dispositiva ou supletivas. É, portanto, o
domínio de atuação da autonomia privada.
Os romanos construíram dois conceitos de
obrigação, embora pouco afeitos à
sistematização e à abstração conceitual. A
primeira e clássica definição dá-nos o sentido
primitivo da obrigação romana:
Obligatio est iuris vinculum quo necessitate adstringimur
alicuius solvendae rei secundum nostrae civitatis iura[49].
[Obrigação
é o vínculo de direito que nos adstringe rigorosamente a pagar
alguma coisa, segundo o nosso direito civil].
A segunda definição é a de Paulo[50],
mais analítica:
Obligationum substantia non in eo consistit, ut aliquod corpus
nostrum aut servitutem nostram faciat, sed ut alium nobis obstringat ad dandum
aliquid vel faciendum vel prestandum.
[A essência das
obrigações não consiste em que alguém faça
nossa uma coisa ou servidão, mas sim em constranger outrem para que nos
dê ou preste algo],
donde
a divisão atual em obrigação de dar, fazer ou prestar.
Quanto às fontes, isto é, aos atos que produzem as
obrigações, elas nasciam inicialmente do contrato (contractus) ou do delito (delictum), divergindo os autores quanto
à ordem de precedência[51].
Posteriormente, já com Justiniano, as fontes passam a ser quatro, a
saber, contrato, quasi-contrato, delito e quasi-delito[52].
O contrato é o acordo de vontades (conventio) que faz nascer o vínculo obrigacional. É
uma das mais notáveis criações da jurisprudência
clássica romana. Sua principal característica é a
reciprocidade, quer dizer, dela nascem “obrigações”
recíprocas para ambas as partes, tuteladas por ações[53].
No sistema contratual romano distinguiam-se os contratos reais (mútuo,
comodato, depósito e penhor)[54],
os contratos verbais[55]
(Stipulatio, Doctis dictio, Promissio
jurata liberti) os contratos literais (nomina transcripticia, syngrapha e chirographum) e os contratos consensuais[56]
(compra e venda, locação, sociedade e mandato), todos eles, com
exceção dos contratos literais, apreendidos pelo Código
Civil brasileiro.
Os quase-contratos,
denominação hoje não usada, compreendiam a gestão de negócios[57],
o pagamento indevido[58],
a comunhão acidental
(condomínio independente de vontade, p. ex. a herança) gerando
obrigações recíprocas, o legado, criando
obrigação para o herdeiro, figuras essas também presentes
no Código Civil.
Os delitos[59]
eram os fatos ilícitos que geravam a obrigação de
indenizar, diríamos hoje, a responsabilidade civil, também
prevista no Código. Compreendiam o furto de coisa, o furto de uso, o
roubo (rapina), a injúria (ofensa física ou moral), prevista
já na lei da XII Tábuas (delitos civis).
Os quase-delitos[60],
obrigações penais de origem pretoriana, em que a responsabilidade
prescindia do dolo ou da culpa, compreendiam o positum et suspensum, o
effusum et dejectum, a responsabilidade dos comandantes de navio e dos
donos de hotel por fato ilícito de seus gerentes, e a responsabilidade
do juiz que não cumpria seu dever de julgar, respondendo pelo
prejuízo causal à parte prejudicada.
Quanto às figuras particulares de obrigação,
o direito justiniâneo distinguia as obrigações em alternativas e genéricas, parciais
e solidárias, divisíveis e indivisíveis e naturais.
Às alternativas refere-se a CI. 4, 5, 10 e D. 46, 3, 95, 1. Às
genéricas, CI. 8, 53, 35, 1 e D. 30, 37 pr. Às parciárias
e às solidárias, D. 45, 2, 7 e D. 46, 1, 22. Às
divisíveis e indivisíveis, D. 35, 2, 80, 1. Às naturais,
D. 12, 6, 13; D. 12, 6, 38; D. 46, 1, 16, 4; D. 46, 3, 94, 3.
O Código Civil brasileiro aprendeu essa matéria e,
com base em outras codificações, regulou-a de modo diverso, nas
modalidades de dar, de fazer e não fazer, alternativas,
divisíveis e indivisíveis e solidárias.
Os direitos patrimoniais compreendem os direitos reais e os
direitos obrigacionais. Ius in re e ius in personam. A
distinção entre essas duas categorias vem-nos do processo romano,
na distinção entre actiones
in rem e actiones in personam. Na
primeira, actiones in rem, o sujeito
afirmava que uma coisa era sua (ação
reivindicatória) ou que, sobre coisa alheia, competia-lhe
determinado direito, de uso, de usufruto ou de servidão. Na actio in personam, o sujeito credor
exigia de pessoa determinada, o devedor, uma certa prestação.
O direito real é o poder direto e imediato sobre uma
coisa. Pode ser pleno, isto é,
compreender todas as possíveis faculdades sobre a coisa, como é a
propriedade, e limitado, quando comporta somente algumas faculdades.
A propriedade era o direito real por excelência,
pressuposto de todos os demais. Junto a ela encontrava-se a posse, que é
uma aparência de propriedade.
Os tipos de direito real conhecidos em Roma, ou melhor, os
direitos protegidos pela actiones in rem
foram o direito sobre a própria coisa ius in re propria, a propriedade, e o ius in re aliena, direito sobre coisa alheia, compreendendo os
direitos de gozo e fruição (servidões prediais, usufruto,
uso, habitação, enfiteuse e superfície) e os direitos de
garantia (fiduciária, penhor e hipoteca).
Embora nas fontes romana não haja uma
definição precisa da propriedade[61],
pode ser definida como sendo o direito mais a absoluto e exclusivo sobre coisa
corpórea, sancionado pela rei
vindicatio.
Inicialmente dominium,
depois proprietas, configurava uma
situação jurídica subjetiva em que alguém exercia
um poder geral e potencialmente absoluto sobre coisa corpórea.
Seus modos de aquisição
eram originários (occupatio, thesaurus, accessio,
specificatio, aquisição
de frutos, usucapio) e derivados
(mancipatio, in iure cessio, traditio).
De salientar, por fim, que toda a sistemática do instituto
jurídico romano da propriedade foi acolhido, com naturais, mas pequenas,
modificações, no sistema do novo Código Civil brasileiro,
no Livro II da Parte Especial.
Era um grupo social e uma comunidade doméstica e
econômica formada por pessoas e bens submetidos à autoridade de um
chefe e senhor, o pater familias.
Teve especial importância para a criação e desenvolvimento
do direito privado romano, que tinha sua base, não no Estado, mas no pater familias. Todas as demais
instituições de natureza privada, como a propriedade, as
obrigações e a herança, explicam-se a partir do direito
familiar.
Formava-se a família com o pater familias, e as pessoas a ele submetidas, como a esposa, os
filhos, nascidos do matrimônio, e as pessoas estranhas que, com a adoptio ou a adrogatio entravam na família.
Entrava-se na família pelo nascimento, com relação aos filhos nascidos do
matrimônio do pater familias, e
pelo matrimônio dos seus filhos
varões, submetidos à sua potestas.
Pelo casamento (conventio in manu), pela adoção
(adoptio), para os estranhos (alieni iuris) ou pela adrogatio,
para os estranhos (sui iuris).
O matrimônio (conjunção de homem e mulher, o
consórcio de toda a vida)[62],
exigia determinado requisitos (capacidade, consentimento) e a
inexistência de certos impedimentos (parentesco) e produzia determinados
efeitos, que eram, basicamente, a criação da
relação matrimonial e a
de parentesco.
O casamento, mais a tutela e a curatela são institutos que permanecem no Código
Civil brasileiro (arts. 1.728 a 1.783).
Sucessão[63]
era a transmissão mortis causa
das relações jurídicas de uma pessoa falecida para seus
herdeiros. Podia ser a título particular
e a título universal. Esta
podia ser testamentária, ab
intestato ou legítima, e pretoriana.
A herança era uma res
incorporea, que compreendia todos
os bens do de cujus, reconhecida como
universalidade no Código de 1916, art. 57, o que não se
mantém no novo Código Civil, por supérfluo.
A sucessão testamentária fazia-se pelo Testamento, que tinha diversas formas[64],
repetidas no novo Código Civil (arts. 1862 a 1896).
A petição de herança, as
substituições, a aceitação de herança, a
deserdação, a revogação, validade e invalidade do
testamento, os legados, e de outro lado, a sucessão legítima[65],
obedeciam à mesma regulamentação jurídica que
está, ressalvadas pequenas alterações, no novo
Código Civil brasileiro.
Cabe agora uma breve referência à metódica
jurídica, ao modo como os romanos criavam o Direito e como decidiam os
casos concretos. Far-se-á, portanto, breve referência ao estudo do
método no direito romano, de aplicação e de
realização ao direito.
Os juristas romanos (iuris
prudentes) preocupavam-se, basicamente, com a solução de
casos concretos, afirmando que a solução
justa depende do caso (in causa ius
esse positum)[66].
Não eram puros teóricos, empenhados exclusivamente na
sistematização das normas e das instituições
jurídicas, nem simples práticos, preocupados com a mecânica
aplicação do direito de sua época. Para eles, o Direito
era produto espontâneo da vida social, competindo-lhes extrair desta os
princípios e as regras necessárias à respectiva disciplina
e organização, o que faziam por meio das soluções (responsa) dadas a problemas concretos
que eram chamados a resolver. A doutrina constituía-se, assim, de modo casuístico,
só excepcionalmente formulando princípios sob a forma de regras (regulae), ou definições,
consideradas perigosas.
O direito romano configurava-se, assim, como uma ciência
prática, feita de soluções de problemas, sem o
caráter axiomático ou dogmático da ciência moderna.
Enquanto que nesta o raciocínio jurídico parte da regra
jurídica para o caso concreto da vida real, no direito romano o jurista
desenvolvia o seu processo mental para dar a solução justa e
resolver o conflito de interesses a partir do caso, do problema que se lhe
oferecia. Seu objeto era o caso, não a norma. Pode-se, assim, afirmar
que, quanto ao método de aplicação do Direito, os romanos
eram empírico-casuísticos,
isto é, partiam da realidade da vida concreta, estudando caso por caso,
e criando a norma jurídica específica para a
solução da respectiva controvérsia ou do conflito de
interesses. Considera-se aqui empirismo o método ou a doutrina que
baseia o conhecimento apenas nos dados da experiência, por
oposição a racionalismo; e casuísmo, ou casuística,
o método segundo o qual o conhecimento prático e teórico
do Direito se adquire por meio da solução dos problemas que se
vão colocando ao homem, no curso da sua história. Como diz KASER,
a «maneira casuística de ver
o direito, isto é, na perspectiva do caso concreto, domina todos os
períodos na história do direito romano»[67]. Esses casos e suas
soluções foram ordenando-se gradativamente dando origem ao que
hoje se denomina de problemática
romana, um pensamento problemático.
Um dos primeiros efeitos decorrentes dessa postura
metodológica era a repugnância
à abstração, principalmente no direito
clássico. Todos os conceitos e generalizações que usamos,
feitos pela racionalização, têm uma história que
não é romana. Consequentemente, os juristas tiveram um papel
preponderante, pois, na ausência de
uma legislação sistemática, o ius civile foi sobretudo obra da interpretatio
prudentium, produto da iurisprudentia dos
juristas romanos[68],
que trabalhavam orientados por princípios na solução dos problemas
que lhes eram apresentados. A interpretatio
ou iurisprudentia resultava das responsa, mais geralmente das sententiae (opiniões ou
pareceres) dos jurisconsultos perante os casos jurídicos que lhes eram
postos pelos cidadãos, ou no exercício de sua assessoria (consilium) aos magistrados e aos
juízes, tendo como base os valores ou critérios da fides, da aequitas, da utilitas etc.
O direito romano foi, portanto, e também, um direito dos
juristas, na medida em que, sendo quase inexistentes os textos legais, eles
decidiam os casos que lhes eram apresentados e para os quais eram chamados e
dar respostas (responsa) ou
decisões (sententia). O
processo de decisão jurídica toma-se, então, a partir do
caso, não de uma lei ou regra pré-existente, pelo que se chega a
dizer que, para o pensamento jurídico romano, no princípio era o caso. O pensamento jurídico romano
era, assim, um pensamento problemático, pois constituía o
direito, a norma jurídica, a partir de um problema e com uma determinada
técnica (techne), formada de
princípios e proposições. O direito se desenvolvia por
meio de um processo, no qual se colocava um problema e tentava-se encontrar
argumentos para resolvê-lo, utilizando-se o pensamento dialético e
construindo-se a norma jurídica adequada ao caso; ela não era
dada previamente, como hoje, pelo sistema jurídico. Não havia
campo para as generalizações, para as reduções
lógicas, para o emprego excessivo de conceitos sendo assim compreensível
a famosa máxima de JAVOLENO, segundo a qual omnis definitio in iure civile periculosa est[69].
Também assim se compreende o princípio segundo a
qual
non ex regula ius summatur, sed ex iure, quod est, regula fiat[70].
[O direito não se
toma da regra, mas é do direito que há que se fazer a regra].
A respeito disso, cabe dizer que o aggiornamento do Código de 1916, se manteve a mesma
estrutura lógico-formal, desse Código adicionou-lhe
princípios, como o da socialidade e o da concreção o da
eticidade e o da boa fé, assim como a possibilidade de recurso a usos e
costumes, conferindo ao juiz um poder muito maior para o suprimento de lacunas[71],
transformando o direito civil, de uma ciência do conhecimento em
ciência de decisão.
[2] Entende-se aqui a tradição romanista como sendo o
direito romano do século VI ao XX, mais precisamente o ius commune, vigente nos países
da Europa continental até a sua consagração no
códigos civis modernos, o francês (1804) e o alemão (1900).
Cf. Franz Wieacker, História
do Direito Privado Moderno, Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1980, 139.
[3] Helena Carvalho de
Lorenzo / Wilma Peres da Costa, A
década de 1920 e as origens do Brasil moderno, São Paulo,
Editora UNESP, 1997, 8. José
Carlos Barbosa Moreira, O direito
em tempos de globalização, in Revista Brasileira de Direito Comparado, nº 20, Rio de
Janeiro, 2002, 13 e segs.
[4] Identifica afirmação faz António Meneses Cordeiro, quanto ao Código
Civil português: «O Direito Civil Português é o
Direito Romano atual», in Teoria
Geral do Direito Civil, Relatório, Lisboa, 1988, 37.
[7] Digesto 1, 1, 7 pr.: Ius
autem civile est quod ex legibus, plebis scitis, senatus consultis, decretis
principum, auctoritate prudentium venit [o ius civile é o que
provém das leis, dos plebiscitos, dos senatus-consultos, dos decretos
dos princípes (constituições imperiais), da autoridade dos
prudentes (Iurisprudentia)].
[8] Clóvis
Beviláqua, Linhas e Perfis
Jurídicos, Rio de Janeiro, Editora Freitas Bastos, 1930, 5.
[10] Cfr. do Autor, A
técnica jurídica na obra de Freitas. A criação
da dogmática civil brasileira
in Augusto Teixeira de Freitas ed il
diritto latinoamericano, Roma, Cedam, 1988, 155/73.
[12] Vincenzo Arangio-Ruiz /
Antonio Guarino, Breviarum iuris
romani, settima edizione, Milano, Giuffrè Editore, 1989, 4.
[16] D. 1, 5, 7: Qui in utero
est, perinde ac si in rebus humanis esse custoditur, quotiens de commodis
ipsius partus quaeritur.
[17] Gaio, Institutiones 1,
8; D. 1, 8, 2 Hermogeniano (Omne autem
jus quo utimur vel ad personas pertinet vel ad res vel ad actiones).
[34] Código Civil arts.
[66] D. 9, 2, 52, 2.
[67] Max Kaser, Römisches Privatrecht (Direito Privado Romano),
tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinaud Hämmerle, Lisboa,
Calouste Gulbenkian, 1999, 35.