N.
9 – 2010 – Contributi
DIREITO
DE RESISTÊNCIA E PODER NEGATIVO NO PENSAMENTO DE NORBERTO BOBBIO: Uma
ANÁLISE CRÍTICA[1]
MARIA DAS GRAÇAS PINTO DE
BRITTO
Universidade Federal de Pelotas – RS
In realtà, l’elaborazione di nuovi strumenti
giuridici e
l’adattamento di antichi e nuovi strumenti
storiografici
costituiscono un lavoro unico per lo studioso delle
istituzioni umane (p. catalano, 1971, XXXVI).
Indíce: Introdução. – I. Análise
do pensamento de Norberto Bobbio sobre direito de resistência e
“poder negativo”. –
I.1. Crise do Estado de direito e razões
históricas da “riviviscenza” do problema da
resistência à opressão.
– I.2. Direito de resistência e
desobediência civil. – I.3. Conceito de poder negativo, segundo
Bobbio. – II. Uma
crítica à concepção de Bobbio sobre direito de
resistência e poder negativo, a partir do IV livro Do contrato social de Jean-Jacques Rousseau. – II.1. Liberdade,
direito de resistência e tribunat (com Rousseau ou contra Rousseau?).
– II.2. “Poder negativo”: Rousseau
e a doutrina romanista. – II.3. Poder negativo e greve: de
Babeuf à romanística contemporânea. – III. Bobbio
com Montesquieu: crítica conclusiva.
– III.1. “Modelo liberal” e
“modelo democrático”: Montesquieu versus Rousseau. – III.2. Direito
de resistência à opressão: exercício da soberania
popular ou garantia constitucional?
– III.3. “Pouvoir négatif”
e “faculté d’empêcher”. – Referências
.
RESUMO
La
resistenza all’oppressione, oggi foi o
tema da conferência de Norberto Bobbio no seminário de estudos Autonomia e Diritto di Resistenza na
Università di Sassari, em 1971 (o texto foi reproduzido na terceira
parte do livro L’età dei
Diritti de 1990 - edição brasileira: 1992). O presente
trabalho é dividido em três partes. A primeira analisa o
pensamento de Bobbio sobre a crise do Estado de Direito, as razões
históricas da “riviviscenza” do tema da resistência à opressão, o direito
de resistência, a desobediência civil e o conceito de poder
negativo. A segunda faz uma crítica à concepção de
Bobbio sobre direito de resistência e poder negativo, a partir do IV
livro Du Contrat social de
Jean-Jacques Rousseau, bem como um exame histórico do desenvolvimento do
pensamento rousseauísta à época da Revolução
Francesa – Gracchus Babeuf e Johann Gottlieb Fichte – e ainda uma
análise das interpretações de alguns romanistas italianos,
particularmente, Pietro Bonfante, Giuseppe Grosso e Pierangelo Catalano. A
terceira faz uma crítica conclusiva.
Palavras
chaves: Norberto Bobbio - Direito de
Resistência - Poder Negativo.
ABSTRACT
La resistenza all’oppressione, oggi was the theme of Norberto Bobbio’s
lecture in the seminary for studies on Autonomia
e Diritto di Resistenza, that occurred in Università di Sassari in
1971 (the text of the conference is reproduced in the third part of the book L’età dei Diritti from 1990
– brazilian edition: 1992). This particular work consists of three parts:
the first analyses the thought of Bobbio referring to the crisis in the State
of Law, the historical reasons of the current "riviviscenza" of the
problem of resistance to oppression, the right to resistance, civil
disobedience and the concept of negative power. The second part criticizes
Bobbio’s conception on the right of resistance and negative power,
through the analysis of the fourth book Du
Contrat social by Jean-Jacques Rousseau, makes a historical examination on
the development of rousseauist thought by the time of the French Revolution
(Gracchus Babeuf and Johann Gottlieb Fichte) and examines the interpretations
of a few Italian Romanists, particularly Pietro Bonfante, Giuseppe Grosso and
Pierangelo Catalano. The third part includes a conclusive analysis on the
thoughts.
Key
Words: Norberto Bobbio - Resistance Right - Negative Power.
No ano de 1971 a Società
Sassarese per le Scienze Giuridiche e a Università di Sassari promoveram o seminário Autonomia e Diritto di Resistenza com o
intuito de discutir as relações entre poder dominante e
resistência (individual, coletiva, cultural e política) e,
paralelamente, encontrar novas instituições impeditivas,
conceitos e categorias da tradição democrática capazes de
dar forma a alguns poderes negativos das organizações de massa.
O tema do evento repercutia o contexto histórico da
Itália marcado pela instabilidade político-institucional, social
e cultural, ainda sob os influxos do espírito de maio de 1968.
Como conferencista, o Prof. Norberto Bobbio apresentou o tema
– La resistenza
all’oppressione, oggi – cujo texto foi publicado em Studi Sassaresi e reimpresso na terceira
parte do livro L’età dei
Diritti (BOBBIO, 1990; 1992 - edição brasileira).
Bobbio inicia a conferencia fazendo uma reflexão sobre o
“problema” do poder (como é adquirido, como é
conservado e perdido, como é exercido e como é possível
defender-se contra ele) que,
no seu entendimento, é “o alfa e o ômega da teoria
política” (BOBBIO, 1992, 143). O “problema” do poder
pode ser analisado sob dois pontos de vista diferentes e oposto, segundo
Bobbio: ex parte principis ou ex parte populi, da perspectiva de
Maquiavel ou da de Rousseau. O
primeiro defende as teorias da razão do Estado, do Estado
potência, do inevitável domínio de uma restrita classe
política, minoria organizada e o dever de obediência. O segundo defende a teoria dos direitos
naturais, o constitucionalismo, a soberania popular, a teoria da ditadura do
proletariado, de Marx e Lenin e o direito à resistência e à
revolução. A história do pensamento político pode
ser considerada de um destes dois pontos vista. Bobbio enquadra o seu discurso
na perspectiva de Rousseau (ex parte
populi)[2].
Partindo dessa premissa, Bobbio passa a tratar do
“velho” tema da resistência à opressão, que
havia perdido parte do interesse no decorrer do século XIX e primeira
metade do século XX, e que retornava ao debate “graças
à imprevista e geral explosão do movimento de
contestação” (Bobbio,
1992, 144)[3].
O autor procura explicar as razões históricas (de natureza
ideológica e institucional) da perda e do recente interesse pelo
assunto.
A seguir, Bobbio aponta as diferenças entre velhas e novas
teorias sobre o direito de resistência, analisa os movimentos de
resistência modernos, ressalta as características dos
vários tipos de desobediência civil, distingue a
desobediência civil das técnicas de pressão não
violentas contra interesses econômicos – da greve à
ocupação de terras – e, das ações exemplares.
Ao final, Bobbio trata do tema do “poder negativo”.
À palestra de Sassari seguiu-se um instigante debate entre
os professores Norberto Bobbio e Pierangelo Catalano acerca do direito de
resistência e “poder negativo” (para contextualizar, cabe
lembrar que, no período 1968 a 1972, o Professor Pierangelo Catalano
ministrou cursos sobre “poder negativo” no Istituto Superiore di Scienze Sociali di Trento[4],
de cuja direção o Professor Bobbio participou durante algum
tempo). Por traz da discussão, subjaz, latente, a
contraposição entre o modelo teórico liberal, precisado
por Benjamin Constant (sob a influência de Montesquieu), com base na
separação dos poderes e na representação
política e o modelo democrático, desenhado por Rousseau (em
parte, reelaborado por Robespierre), fundado na soberania do povo, na liberdade
ativa, a “liberdade dos antigos”[5],
na resistência à opressão, e no tribunat como uma alternativa à divisão dos poderes.
É, a partir da análise do pensamento de Bobbio,
expresso e debatido no Seminário de Sassari, que pretendo, neste estudo,
contrapor os dois modelos teóricos e, paralelamente, recuperar a
memória histórica do pensamento democrático rousseauniano.
O recente interesse pelo tema da resistência depende,
segundo Bobbio, da inversão de tendência que ocorreu no plano
ideológico e institucional com relação à
concepção e à práxis política do Estado
liberal (e democrático) no transcorrer do século XIX (Bobbio, 1992, 149-151).
Do
ponto de vista ideológico, a crença no enfraquecimento natural do
Estado foi uma das características das ideologias políticas do
século XIX. De acordo com Bobbio, a ilusão oitocentista consistia
em acreditar que através da reforma, da revolução científica
e industrial, isto é, através do processo de fragmentação
da unidade religiosa, da secularização da cultura e da
formação de uma camada de empresários independentes haviam
se iniciado dois processos paralelos de desconcentração do poder,
com a consequente “desmonopolização” do poder
ideológico-religioso e a “desmonopolização” do
poder econômico. Nesta perspectiva, restaria ao Estado apenas o
monopólio do poder coercitivo a ser usado em defesa do antagonismo de
ideias e da concorrência de interesses (1992, 146-147). Todavia, na
opinião de Bobbio, as funções do Estado não
diminuíram com o desenvolvimento da sociedade industrial como queriam os
liberais, que confiavam na validade absoluta das leis da evolução
e na ideia de que os homens deviam se deixar guiar mais pelas leis naturais da
economia do que pelas leis artificiais da política.
Com
relação à desconcentração do poder, Bobbio
diz que, ao contrário do que se esperava, se observa, tanto nos
países de economia coletivista quanto nos países capitalistas, um
processo de “remonopolização” do poder
econômico através da concentração das empresas e
bancos, de “remonopolização” do poder
ideológico através da formação de grandes partidos
de massa e, concomitantemente, o controle dos meios de formação
de opinião pelos detentores do poder econômico nos países
capitalistas (BOBBIO, 1992).
Do ponto de
vista jurídico-institucional, os remédios constitucionais
prescritos para limitar o poder tradicional em nome do direito à
resistência e à revolução (a separação
dos poderes, o Estado de direito, a constitucionalização da oposição
e a investidura popular dos governantes) não surtiram, segundo Bobbio,
os efeitos esperados. Da mesma forma, não se materializou a
crença na autossuficiência do sistema político frente ao
sistema social nem a ideia de que bastava buscar remédios aptos a
controlar o sistema político para controlar o sistema de poder de toda a
sociedade. Sabe-se, hoje, que o sistema político é um subsistema
do sistema global, e que o controle do primeiro não implica o controle
do segundo (Idem).
Portanto, na
opinião de Bobbio, o ressurgimento do tema da resistência[6]
se deve a inutilidade dos remédios constitucionais ministrados pelo
Estado liberal (e democrático) contra o abuso do poder.
Quando o tipo de Estado que se propôs a absorver o direito
à resistência mediante sua constitucionalização
entra em crise, é natural que se recoloque o velho problema, bem como
que voltem a ecoar, ainda que sob novas vestes, as velhas
soluções, as quais, na época, iam desde a obediência
passiva até o tiranicídio, enquanto agora vão da
desobediência civil à guerrilha (BOBBIO, 1992, 152).
Bobbio analisa as diferenças entre as velhas e novas
teorias do direito de resistência a partir do sujeito ativo e passivo do
ato de resistência (considerado hoje um fenômeno coletivo, e
não individual como no passado) e das situações nas quais
o direito nasce (conquista, usurpação e exercício abusivo
do poder). Para Bobbio, a maior diferença entre essas teorias se
encontra na motivação e no tipo de argumentação com
as quais se enfrenta o problema da resistência. Assim, “enquanto as
velhas teorias discutiam o caráter lícito ou ilícito da
resistência, ou seja, o problema era colocado em termos
jurídicos”, nas novas teorias a discussão se dá
“em termos essencialmente políticos, ou seja, se coloca o problema
da sua oportunidade ou eficácia” (Bobbio, 1992,
153-154).
Em suma, “não se pergunta se a resistência
é justa e se constitui um direito, mas se é adequada à
finalidade”. O debate hoje, “não versa sobre direitos e
deveres, mas sobre as técnicas mais adequadas a empregar naquela
oportunidade concreta, isto é, técnicas de guerrilha versus
técnicas da não violência” (Bobbio, idem, 155).
Na opinião de Bobbio, dois movimentos de resistência
dividem o mundo hoje: aquele que se expressa nos partidos
revolucionários – leninismo – e o que se expressa na
desobediência civil – gandhismo –. A diferença entre
os dois movimentos está no uso ou não da violência e, do
ponto de vista ideológico, na justificação do uso da
violência. Para a teoria revolucionária (de matriz leniniana e
marxiana) o Estado burguês, enquanto fundado na opressão de uma
classe sobre outra é, no dizer de Marx, “violência
concentrada e organizada da sociedade” (um dos temas guia das teorias
revolucionárias que vão de Lenin a Mao; da guerra popular
à guerrilha) (BOBBIO, 1992, 155). Desta perspectiva, justifica-se o uso
da violência porque “o fim justifica os meios”. Para Bobbio o
excesso de violência pode ser igualmente justificado: “nova com
relação à teoria tradicional é a
justificação, também, daquele excesso de violência
em que consiste o terror, de Robespierre a Mao”[7].
No caso da desobediência civil, nova tradução
da resistência passiva, Bobbio afirma que a justificação do
uso da não-violência não é mais de natureza
religiosa ou ética, e sim política; “ao se tomar
consciência de que o uso de certos meios prejudica a
obtenção do fim, o uso de métodos não violentos
é considerado politicamente mais produtivo” (BOBBIO, 1992, 156). Neste sentido, “a não
violência serve melhor à obtenção do fim
último, isto é, uma sociedade mais livre, justa, sem opressores
ou oprimidos, do que a violência” (Bobbio, idem, 156).
A desobediência civil pode assumir de diferentes formas,
dentre estas Bobbio destaca: a não observância de uma lei
proibitiva, que consiste numa ação positiva; a não
execução de uma lei imperativa, que consiste numa omissão
ou numa abstenção; fazer o contrário do que é
ordenado; deixar de fazer o que se deve ou fazer em excesso (como ocorre na
obstrução parlamentar).
Na opinião de Bobbio é preciso distinguir as
várias formas de desobediência civil das técnicas de
pressão não violenta voltadas contra interesses econômicos,
que consistem em abstenção, como a greve ou o boicote, ou em
ações, como a ocupação de terras, de
fábricas ou a greve ao contrário. Umas e outras diferem das
ações exemplares.
Apesar das diferenças, essas várias técnicas
têm em comum a finalidade principal, “que é mais a de
paralisar, neutralizar, por em dificuldade o adversário do que
esmagá-lo ou destruí-lo [...] não ofendê-lo, mas
torná-lo inofensivo. Não contrapor ao poder um outro poder, um
contrapoder, mas tornar o poder impotente”(1992, 157).
A opinião de Bobbio sobre “poder negativo”
aparece mais clara e mais coerente com o modelo teórico que ele defende,
no debate após a conferência.
Questionado por Catalano sobre o poder negativo, Bobbio
responde: “Confesso che non so bene
donde Catalano abbia derivato l’espressione «potere negativo»”.
Ato contínuo, Bobbio define “poder negativo”: “Io intendo per «potere
negativo» potere di veto (BOBBIO,
1973, 244) [...] cioè il potere,
per dirla con Rousseau, di quell’organo o di quella persona che
«non potendo far nulla, può tutto impedire»” (idem,
30).
Depois de limitar o âmbito do
“poder negativo” ao poder de veto, Bobbio diz que não se
pode incluir no poder negativo formas de resistência, como a greve, como
pretende Catalano. Credita a confusão ao fato de que tanto a greve quanto
o poder de veto visam à mesma finalidade: paralisar o exercício
do poder dominante.
Na sequência Bobbio aponta algumas
diferenças entre o poder de veto e a resistência passiva: poder de
veto é poder negativo quando bloqueia uma determinada
deliberação ou impede que esta seja implementada; a
resistência passiva visa torná-la ineficaz depois de já ter
sido implementada, através do seu não cumprimento. O poder de
veto se manifesta através de uma declaração de vontade; a
resistência passiva se expressa através de comportamentos
comissivos (quando se faz efetivamente algo) ou omissivos (quando se deixa de
fazer algo). O poder de veto é geralmente institucionalizado (depende de
norma que o autorize), a resistência passiva nasce fora dos quadros das
instituições vigentes (embora algumas possam ser
institucionalizadas). O poder de veto é quase sempre exercido no
vértice (como o veto de um chefe de Estado a uma lei aprovada no
parlamento), a resistência é exercida na base. O poder de veto
é, de regra, o resíduo de um poder que resiste à morte, a
resistência, ao contrário, pode sinalizar um poder novo. O poder
de veto serve para manter o status quo,
a resistência passiva tende à mudança. Bobbio observa que formas de
resistência passiva, como a greve e o boicote, não consistem em
desobediência à lei.
Portanto, na opinião de Bobbio, “poder de veto e
resistência passiva são estrutural e funcionalmente duas coisas
diversas” (BOBBIO, 1992, 157-158). Por esta razão, receia
incluí-los na categoria de “poderes negativos”, como faz
Catalano:
Catalano inclui no genus poder negativo, que para ele abrange uma extensão muito mais ampla,
duas espécies que ele tem chamado de poder negativo direto e poder
negativo indireto. É provável que aquilo que eu chamei de direito
de resistência entre naquilo que Catalano chama de poder negativo direto
[...].Eu aindo não estou inteiramente convencido que direito de veto e
direito de resistência possam ser colocados sob a mesma etiqueta (Bobbio,
1973, 245, tradução nossa).
Pode-se dizer que Rousseau está para a doutrina
democrática como Montesquieu está para a doutrina liberal[8].
Os modelos constitucionais delineados por estes dois autores são
antagônicas e deram origem a duas vertentes do pensamento político
e jurídico com grande repercussão na Revolução
Francesa: a corrente do pensamento girondino (liberal) e a corrente jacobina
(democrática). A antítese entre liberalismo e democracia se
baseia na contraposição historiográfica entre “liberté antiques” (liberdade
ativa) e “liberté
moderne” (liberdade negativa)[9]
criada por Benjamin Constant, sob influência do pensamento de Montesquieu[10].
A tese de Constant, enunciada em Paris no ano de 1819, no célebre
discurso: De la liberté des
anciens comparée à celle des modernes, causou forte impacto e
teve grande importância na elaboração do pensamento liberal
a partir do início do século XIX.
Rousseau, que obviamente
desconhecia tal contraposição, delineou um modelo constitucional
inspirado na visão histórica da Antiguidade de Maquiavel[11].
No livro IV do Do contrato social
encontram-se os elementos estruturantes do modelo rousseauniano: a idéia
do pactum societatis[12], a teoria da soberania popular[13],
a crítica à representação política – a
soberania não pode ser representada pela mesma razão porque
não pode ser alienada (ROUSSEAU, 1962) –, a liberdade republicana
(entendida como participação direta dos cidadãos na vida política)[14], o direito de resistência coletivo contra o abuso do
governo e o tribunat [15] – que não podendo fazer
nada, tudo pode impedir – [16].
O conceito de tribunat de Rousseau depende da
interpretação de Maquiavel. Nos Discorsi sopra la prima deca di
Tito Lívio (1982-Edição
brasileira). O modelo de Rousseau foi inspirado na visão
histórica da antiguidade de Maquiavel e no conceito de tribunat de Rousseau. No capítulo
V. dos Discorsi sopra la prima deca di Tito
Lívio Maquiavel aponta como causas da
perfeição da República romana a desunião entre o
povo e o Senado[17]
e a instituição dos tribunos da plebe. No mesmo capítulo,
depois de perguntar a quem se pode confiar com mais segurança a defesa
da liberdade[18],
Maquiavel responde: “Em outros tempos os lacedemônios a confiaram
aos nobres, como faz em nossos dias os venezianos: já em Roma, ela
estava nas mãos do povo [...] E os tribunos foram os guardiães
das liberdades romanas” (MAQUIAVEL, 1982, 32-33).
Para entender Rousseau é preciso entender o pensamento de
Maquiavel e não se entende Rousseau se não se compreende o
pensamento e a reflexão posterior de Robespierre, Fichte, Babeuf.
A ideia do tribunato
continua com Juan de Mariana (1598) e Johannes Althusius (1614). Mariana
identificou na Justicia Mayor de Aragón um magistrado
intermediário entre o rei e o povo, uma espécie de tribuno,
(“medium itaque magistratum
crearunt tribunitiae potestatis instar”)[19]
para limitar o poder real. Johannes Althusius tipificou a resistência
coletiva (até o limite da secessão) e, com base no pensamento dos
monarcômacos protestantes, desenvolveu a ideia do Ephorat.
Toda a
elaboração teórica sobre instituições
impeditivas (tribunato ou Ephorat)[20],
desde Maquiavel até Althusius, encontra-se no pensamento de Rousseau[21],
que é o ponto de partida da moderna reflexão sobre o tribunat como instrumento de democracia.
Rousseau individualizou
e precisou o conceito de tribunato no livro IV do apoiado na sua visão histórica da Antiguidade[22].
No sistema rousseauiano o tribunato é instrumento da soberania do povo
no seu aspecto negativo, guardião das leis – da vontade da
universalidade dos cidadãos soberanos –, defensor da
resistência contra o abuso do poder. Embora conexos, direito de
resistência popular e poder tribunício, como instrumento da
vontade popular, são conceitos distintos (CATALANO, 1971).
No
capítulo V do livro IV Contrato
Social – Do tribunato – Rousseau propõe a
instituição do tribunat
para defender a liberdade do poder com o
“poder negativo” de “impedir tudo”:
Quando
não se pode estabelecer uma proporção exata entre as
partes constitutivas do Estado, ou quando causas indestrutíveis lhes
alteram incessantemente as relações, institui-se então uma
magistratura particular que não forma corpo com as outras, que torna a
colocar cada termo na sua verdadeira relação e que estabelece uma
ligação ou um termo médio quer entre e o príncipe e
o povo, quer entre o príncipe e o soberano, ou ainda, simultaneamente,
caso seja necessário de ambos os lados. Esse corpo, que chamarei de tribunato, é o conservador das
leis e do poder legislativo. Serve, algumas vezes, para proteger o soberano
contra o Governo como em Roma faziam os tribunos do povo; outras vezes para
sustentar o Governo contra o povo, como atualmente em Veneza faz o conselho dos
Dez, e, outras vezes ainda, para manter o equilíbrio de um lado e de
outro, como os éforos o faziam em Esparta. O tribunato não é
certamente uma parte constitutiva da cidade e não deve ter nenhuma
poção do poder legislativo nem do executivo, e nisso exatamente
está seu maior poder, pois, não podendo fazer nada, tudo pode
impedir (ROUSSEAU, 1962, 106 ss.).
Rousseau se contrapõe a Montesquieu tanto no que se refere
ao tribunato quando ao direito de resistência.
A interpretação histórica de Rousseau do
tribunato depende daquela de Maquiavel (a criação dos tribunos da
plebe fez a república mais perfeita). A interpretação de
Montesquieu depende, em parte, da concepção moderada de
Cícero (De leg. 3. 10), para
quem o tribunato era um instrumento usado pelos nobres para conter a
impetuosidade do povo.
Montesquieu comenta a opinião de Cícero sobre o
tribunato:
Cícero acredita que o estabelecimento dos tribunos de Roma
foi a salvação da república. “De fato”, diz
ele, “a força do povo que não possui chefe é mais
terrível. Um chefe sente que o caso depende dele e pensa nisso; mas o
povo, impetuoso, não conhece o perigo no qual está se
lançando. Pode-se aplicar esta reflexão a um Estado
despótico, que é um povo sem tribunos, e a uma monarquia, onde o
povo possui de alguma forma, tribunos (MONTESQUIEU, 1996, 68).
Para Montesquieu o tribunato era um meio através do qual
os nobres faziam justiça ao povo (Montesquieu,
1996). Para Rousseau o tribunat é
sempre defensor das leis, defensor da vontade do conjunto dos cidadãos
soberanos, mesmo quando faz um meio termo entre o Príncipe e o povo.
Neste sentido, o tribunato não tem uma função meramente
jurisdicional nem pode ser reduzido a um controle de constitucionalidade
– tem função política em sentido pleno –
(CATALANO, 1972).
No livro XI, cap. VI Do
espírito das leis – Da
constituição da Inglaterra –, para defender a
hipótese de o poder executivo vetar atos do poder legislativo,
Montesquieu estabelece a distinção entre a “faculté de statuer” e a
“faculté
d’empêcher” e, não obstante a critica, atribui aos
tribunos da plebe o poder de impedir a aplicação do direito.
Chamo faculdade de estatuir o direito de ordenar por si mesmo, ou
de corrigir o que foi ordenado por outro. Chamo faculdade de impedir o direito
de anular uma decisão tomada por outrem; o que era o poder dos tribunos
de Roma [...]? vicioso no sentido de que paralisava? não só a
legislação, mas também a execução: isso
causava grandes males[23].
Com o triunfo do Estado liberal (de tradição
montesquieuiana) a ideia do tribunat
(rousseauiana), como instituição política de natureza
impeditiva e instrumento da soberania do povo, se transformou em uma
instituição de controle de constitucionalidade, sem base popular,
complementar e funcional à divisão dos poderes (CATALANO, 1971).
A ideia do tribunat rousseauísta
reaparece no pensamento dos jacobinos no decorrer da Revolução
Francesa. Robespierre, por exemplo, viu o tribunat
como uma alternativa à divisão dos poderes de Montesquieu[24].
O tribunat e a
divisão dos poderes têm a mesma finalidade, isto é, limitar
o poder do governo. Todavia, do ponto de vista técnico e
político, apresentam soluções diferentes para o mesmo
problema. No modelo montesquieuiano os poderes do governo se limitam
reciprocamente sem que haja uma limitação absoluta de um em
relação aos demais. Com o tribunat
é inserido no mecanismo dos poderes um poder ulterior, uma
instituição específica, externa e estranha às
funções do poder de legislar, governar e julgar, que tem a
função especial e essencial de limitar o conjunto dos poderes do
governo (LOBRANO, 1983).
No decorrer da Revolução Francesa foram
apresentadas algumas propostas (sem êxito) para a
instituição de um poder tribunício, como por exemplo: os Sans-culottes propuseram a
criação de um tribunal
d´éphores (1793); o projeto jacobino de
Constituição (9 e 10/06/1793) previa a criação de
um grand juré national; Babeuf e Buonarroti projetaram a
criação de um Corps des
conservateurs de la volonté nationale, curateurs de la liberté, uma espécie de tribunat. Na Alemanha, Fichte (1796)[25],
um crítico da
divisão dos poderes, completou o desenvolvimento teórico da
categoria de “poder negativo” contrapondo a um absolut positive
Macht (o Poder Executivo) um absolut negative Macht, isto é,
o Epforat em sentido estrito (os Ephoren sacrosancti, como
os tribunos da plebe)[26].
No que diz respeito ao direito de resistência à
opressão e à visão histórica da Antiguidade a contraposição
entre o modelo democrático e o modelo liberal é evidente.
No livro VIII, cap. XI
do Esprit des lois Montesquieu
critica, ao mesmo tempo, o tribunato e o direito de resistência:
“tal instituição, que estabelecia a sedição para impedir o
abuso do poder, parecia-me mais propensa a destruir qualquer república
(MONTESQUIEU, 1995). Com efeito, pode-se afirmar
que Montesquieu repudia o direito de resistência popular.
Para
Rousseau a resistência à opressão é direito do povo
soberano contra o injuria do poder. Coerente com a sua visão
histórica da Antiguidade apresenta como exemplo de resistência a
relação dos decênviros com os comícios de Roma:
Os decênviros eleitos a princípio por um ano e
depois conservados por mais um ano, tentaram reter perpetuamente o poder,
não mais permitindo a reunião dos comícios. Valendo-se
desse meio fácil, é que os Governos do mundo, uma vez revestidos
de autoridade, mais cedo ou mais tarde usurpam a autoridade soberana (ROUSSEAU, 1962, 90).
Rousseau admite a possibilidade de revogação do pacto social pelo conjunto dos cidadãos: “no momento em que o governo usurpa a soberania, rompe-se o pacto social e todos os simples cidadãos, repostos de direito em sua liberdade natural, estão forçados, mas não obrigados a obedecer” (1962, 80). O pacto pode ser rompido, também, por um particular que, optando pelo exílio, “retoma sua liberdade natural e seus bens, saindo do país” (idem, 90).
Reencontramos o direito
de resistência rousseauiano no pensamento dos jacobinos na
Revolução Francesa. O artigo II da Déclaration des
Droits de l'Homme et du Citoyen
(1789) afirmava o direito de resistência do povo: “Le but de toute association politique est la
conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’homme. Ces
droits sont la liberté, la propriété, la
sûreté et la résistance à l’oppression”.
A
Declaração de direitos (de 21 de abril de 1793) lida por
Robespierre e aprovada por unanimidade no
Club des Jacobins, contemplava o direito de resistência
rousseauniano em:
Art. XXV. La
résistance à l'oppression est la conséquence des autres
droits de l'homme et du citoyen”; Art. XXVI. Il y a oppression contre le
corps social, lorsqu’un seul de ses membres est opprimé. Il y a
oppression contre chaque membre du corps social lorsque le corps social est
opprimé; Art. XXVII. Quand le gouvernement viole les
droits du peuple, l’insurrection est pour le peuple et pour chaque
portion du peuple, le plus sacré des droits et le plus indispensable des
devoirs; Art. XXVIII. Quand la garantie sociale manque à un citoyen, il
rentre dans le droit naturel de défendre lui-même tous ses droits e Art. XXIX. Dans l'un et
l'autre cas, assujettir à des formes légales la résistance
à l'oppression, est le dernier raffinement de la tyrannie[27].
Diferentemente
do projeto jacobino, o projeto girondino de Declaração de
direitos previa o uso de meios
legais para resistir à opressão: Les hommes réunis en société doivent avoir un
moyen légal de résister à l’opression (Art.
XXXI); Dans tout gouvernement libre, le
mode de résistance à ces différents actes
d’oppression doit être réglé par la constitution
(Art. XXXII).
Inconformado com a aprovação definitiva do texto da
Declaração de Direitos em 29 de maio de 1793, Robespierre convida
o povo a resistir à opressão: “Je
suis incapable de prescrire au peuple les moyens de se sauver. Celà
n’est pás donné à um seul homme [...]”
(CATALANO, 1971, 68).
Podemos concluir que a interpretação girondina da
soberania popular é distinta daquela rousseauiana-robespierriana e,
avizinhando-se da soberania nacional liberal, acaba por cancelar o direito de
resistência (CATALANO, 1971).
Com o
“golpe” do Termidor e a prevalência dos ordenamentos de
origem montesquieuiana, a tradição do pensamento
democrático de origem rousseauiana foi esquecida. A ideia do tribunato
como instituição impeditiva e expressão do lado negativo
da soberania dos cidadãos, proposta por Rousseau, segundo o modelo
romano, foi substituída por órgãos com
função de controle de constitucionalidade complementares a
divisão dos poderes (CATALANO, 2005). Por outro lado, o Estado de
Direito liberal absorveu o direito de resistência na forma de garantia
constitucional, sujeitando o seu exercício a formas legais. Da mesma
forma as doutrinas jurídicas e políticas liberais tentaram
integrar ao Estado o poder negativo, sob a forma de controle de
constitucionalidade e o direito de resistência, sob a forma de
desobediência civil (CATALANO, 1982).
Assim,
a burguesia rejeitou a ideia do tribunato e da resistência popular de
matriz rousseauiana e, por conseguinte, o modelo constitucional do povo romano,
“modèle de tous les peuples libres” (Catalano, 1996, 541).
Com
relação ao “poder negativo” e o seu desenvolvimento
teórico vale recordar a sistematização de Fichte que,
não obstante algumas diferenças entre o seu pensamento
político e o de Rousseau[28]
apresenta, de forma precisa, a ideia de poder negativo através do Efhorat (tradução do tribunat rousseauiano). No sistema
constitucional fchitiano[29]
o Efhorat está vinculado
à ideia do pactum societatis e
à concepção de povo – universi populi – como fonte única e contínua
do direito – iussum populi –.
Em Fichte o Efhorat/tribunat é
concebido como instrumento de controle do poder, como alternativa à divisão
dos poderes. Cabe ao povo/comunidade nomear os Ephoren sacrosancti, que embora não tenham nenhuma
porção do poder executivo, têm um absoluto poder negativo,
isto é, o poder de paralisar completamente o poder público.
Em Rousseau o tribunato faz o meio termo entre o povo e o
governo. Em Fichte, ao Efhorat
é confiada a própria vida do povo soberano, titular e detentor do
poder de fiscalização e de controle contra o abuso do poder
executivo, no qual Fichte inclui o poder judiciário (LOMBRANO, 1996).
Além do Efhorat o
povo conserva o direito de resistência e, na hipótese dos Ephoren se aliarem ao poder executivo
para oprimir o povo, Fichte admite o direito de o povo se insurgir e resistir
à opressão.
Fichte superou a insuficiente
elaboração teórica de Rousseau, corrigiu a
ambigüidade terminológica do genebrino, que usa a expressão “droit négatif” ora
para indicar o poder de veto do governo ora o do povo e precisou a
expressão “pouvoir négatif” com em
relação ao tribunato.
Em
Römische Geschichte, obra publicada
em 1854, Theodor Mommsen, (sistematizador do direito público romano, em
especial, do tribunato), interpreta o poder tribunício segundo a
perspectiva rousseauiana-fichtiana: “il
potere dei consoli è essenzialmente positivo, il potere dei tribuni
è essenzialmente negativo [...]” [30]. Todavia, no livro Römisches Staatsrecht, publicado em 1871, Mommsen muda de
opinião a respeito do tribunato: o poder tribunício, considerado
anteriormente como um poder “essenzialmente negativo” é
convertido em uma das funções positivas dos magistrados em geral.
Desta forma, Mommsen elimina, de uma só vez, o “poder
negativo” fichtiano, o tribunat rousseauiano
e a “faculté
d’empêcher” de Montesquieu (LOMBRANO, 1996, 342-343).
Contudo, foi através de Mommsen que a descrição do poder
tribunício como expressão “poder negativo” entrou na
historiografia do direito romano (LOMBRANO, 1983).
A
interpretação liberal individualista feita por Mommsen –
sob a influência de Constant, mediada por Hegel –, do Direito
Público Romano teve grande repercussão na doutrina romanista e
foi decisiva para cancelar da memória histórica as
instituições públicas romanas, por conseguinte, as teorias
de Rousseau e dos jacobinos.
Toda essa
elaboração teórica se liga no século XX a Pietro
Bonfante que distinguiu na soberania popular um “lado negativo” e
um “lado positivo”, reintroduzindo, assim, a
contraposição entre “poder positivo” e “poder
negativo” estabelecida por Fichte.
Segundo Bonfante, o “lado negativo” da soberania se
desenvolve com lógica natural no poder negativo dos tribunos, do qual a intercessio é instrumento e
expressão:
[...] il lato positivo della sovranità sfugge
completamente ai tribuni [...] Il lato negativo, invece, essenziale alle loro
funzioni, è esaltato, e sovrasta, come la forza degli Efori a Sparta,
alla sovranità stessa del magistrato supremo [...] Strumento ed
espressione di questo potere negativo è la intercessio [...] (BONFANTE, 1934, 115).
Foi
através de Bonfante que a categoria “poder negativo”
reentrou na doutrina romanística contemporânea.
A
linha de pensamento que procede de Rousseau concebe o exílio, a
secessão, a resistência e a greve como expressões
historicamente determinadas do lado “negativo” da soberania dos
cidadãos (CATALANO, 1982).
O “poder negativo”, enquanto aspecto
“negativo” da soberania popular é poder do povo que o povo
exercita diretamente na secessão e na greve e, indiretamente,
através de instituições genericamente denominadas de
“tribunato” (tribuni plebis,
tribunal d’éphores, grand jury national etc.). Neste
sentido, pode-se falar em “poder negativo direto” e “poder
negativo indireto” (CATALANO, idem, 152).
A primeira reflexão sobre a greve geral surge no
pensamento de Gracchus Babeuf, descrito por Robert Rose como “the first revolucionary communist”[31].
Babeuf propôs a instituição de um tribunat, isto é, de um “poder negativo
indireto”, que chamou de curateurs
de la liberte, e vinculou a greve geral, “poder negativo
direto”, às secessões da plebe de Roma: “Que le Mont Sacré ou la Vandée
plébéienne se forme sur un seul point ou dans chacun des 86
départements”[32].
Jean Allemane, criador do Parti Ouvrier Socialiste
Révolutionnaire (1890), vinculou as greves dos movimentos de “résistances”
operários Inglês e Francês às secessões da
plebe[33],
dando continuidade ao pensamento de Babeuf.
A
vinculação da greve às antigas secessões
plebéias persistiu e manteve viva a ideia da greve geral no decorrer do
século XIX. O pensamento democrático rousseauniano repercutiu, de
certa forma, na Constituição da República Italiana de 1948
no que se refere à concepção da soberania e às
relações entre a coletividade e os cidadãos.
Segundo
Catalano, o artigo 40 da Constituição – Il diritto di sciopero si esercita
nell’ambito delle leggi che lo regolano – coligado com o artigo
1 – L’Italia è una
Repubblica democratica, fondata sul lavoro. La sovranità appartiene al
popolo, che la esercita nelle forme e nei limiti della Costituzione – consagra
o direito de greve como aspecto “negativo” da soberania do povo. Catalano afirma que a qualificação do direito de
greve como direito de liberdade ocorreu durante os trabalhos
preparatórios da Constituição. Foi considerado um direito
fundamental por democrata-cristãos; socialistas e comunistas; um direito
sacrossanto por Umberto Merlin, um direito natural por Pietro Mancini e um
direito da personalidade humana, por Giuseppe Di Vittorio (Catalano, 1972).
Ao reconhecer o direito
de greve, a Constituição italiana concedeu aos cidadãos-trabalhadores
um poder “que ne pouvant rien faire
Il peut tout empêcher”. Por meio da abstenção ao
trabalho os trabalhadores podem exercer de modo direto e efetivo a soberania em
seu aspecto negativo (Catalano,
1982, 151).
Nos anos mil novecentos
e cinquenta Giuseppe Grosso, Presidente da Província, posteriormente
prefeito da cidade de Turim e à época Diretor da Faculdade de
Direito onde lecionava Bobbio, manifestou-se em defesa da legitimidade da greve
política ao comentar o Art. 40 da Constituição Italiana.
Grosso conectou o poder impeditivo
dos tribunos às secessões da plebe (poder externo à
estrutura do governo e exercitado em contraposição aos poderes do
governo) [34],
à greve e à organização sindical:
Il potere sindical, coll’arma dello
sciopero, è entrato nella struttura della società e dello Stato
moderno come il potere tribunizio nella civitas romana, [...] questo mezzo
potrebbe piuttosto essere paragonato alle secessioni che non
all’intercessio per la sua diretta funzione paralizzatrice (GROSSO
1952-1953, 9)[35].
Significativa é a posição de Giorgio La
Pira, membro da Assembléia Constituinte da República Italiana e
por vários anos prefeito de Florença, com relação
ao “poder negativo” e ao direito de greve. Em cartas dirigidas a
Catalano (20 junho) (15 setembro), no ano de 1970, por ocasião do
Seminário de Sassari, escreveu La Pira:
[O poder negativo] é a emergência tão
característica, de um direito constitucional visto “da outra
face”: o outro lado da Constituição; [...] o fim
político é o fim último, inevitável de cada fim
intermediário (econômico, reivindicativo etc.): cada greve
é, em última análises, um (grande) ato político (
de pressão política): tende à transformação
da sociedade e da civilização que manifesta as carências;
é “iuris civilis corrigendi gratia” (CATALANO,
2005, 650, tradução nossa).
O poder negativo, incluindo-se o exercitado diretamente na greve
geral, não deve ser confundido com a resistência popular, que
é outra forma de exercício da soberania do povo.
Mortati define a resistência popular como “Movimentos
que emanam das forças políticas para sustentar a
constituição material contra as tentativas de subversão
efetuadas
por quem, havendo assumido o poder, volta-se contra o
regime” (Catalano, 1982,
157). Desta perspectiva, a
resistência popular pode ser considerada como uma forma de garantia
constitucional não jurisdicional.
Na opinião de Catalano, uma confusão dos dois
conceitos resultaria na diminuição do poder popular: o poder
negativo ao invés de ser reconhecido como um aspecto do poder
político do cidadão, particularmente do cidadão
trabalhador, passaria a ser reconhecido somente no caso de
violação da Constituição (2005).
Segundo Catalano, o poder tribunício rousseauiano e o
direito de greve como poder negativo superam a distinção entre
poder de controle constitucional e poder político; podem operar tanto em
função de garantia constitucional como de luta política
(CATALANO, idem).
O desenvolvimento teórico do “poder negativo”,
que começa com Maquiavel e Rousseau e continua com Fichte, Bonfante e
Grosso, se aperfeiçoa e se completa com Catalano. Os estudos de Catalano
mostram a necessidade da reutilização e atualização
de conceitos esquecidos pela tradição do pensamento
democrático, particularmente, o de “poder negativo” e
daqueles vinculados à “soberania negativa” dos
cidadãos, a fim de que se possam encontrar novas formas de poder dos
cidadãos frente ao Estado, às entidades públicas e
às grandes empresas.
A polêmica entre Bobbio e Catalano sobre o “poder
negativo” e a inclusão da greve na categoria “poder
negativo” revela a contraposição entre duas
concepções do Estado e, conexas a estas, duas visões
antitéticas do direito público romano: a liberal, inspirada em
Montesquieu, e a democrática, delineada por Rousseau.
Como grande teórico da política Bobbio conhece bem
a tradição do pensamento democrático, cujos fundamentos
encontram-se na teoria da soberania popular e na teoria do contrato social.
Bobbio conhece as duas vertentes doutrinárias antitéticas que
deram origem e nortearam o pensamento e a teoria política de antes e
depois da Revolução Francesa: a vertente liberal, baseada na
concepção de Estado de Montesquieu (precisada por Constant) e a
vertente democrática, fundada na concepção de Estado de
Rousseau.
O Seminário de Sassari teve como finalidade discutir a
contraposição entre governo e povo, entre o poder e os limites do
poder do governo. Paralelamente, buscou individualizar elementos e categorias
conceituais, refletir sobre novas instituições negativas, a
partir daquelas presentes na tradição do pensamento
democrático vinculadas à “soberania negativa” dos
cidadãos.
Da conferencia de Bobbio e do debate com Catalano pode-se inferir
que, do ponto de vista teórico, os dois estudiosos têm
visões opostas quanto à concepção do Estado. Bobbio
segue o modelo liberal da representação política, dos
direitos individuais[36],
da soberania do Estado e da divisão dos poderes completado pelo controle
de constitucionalidade. Catalano segue o modelo democrático do pacto
societário, da soberania do povo, da liberdade do cidadão
entendida como participação no poder, do direito de
resistência à opressão e do tribunat como alternativa à divisão dos poderes.
Relativamente ao direito de resistência à
opressão, deve-se ressaltar a ausência incompreensível de referência
à tradição do pensamento democrático, especialmente
ao de Rousseau, na fala de Bobbio. O autor poderia ter aprofundado e explorado
mais a linha doutrinária que provém de Rousseau que concebe a resistência
e o poder negativo como expressões historicamente determinadas da
soberania popular e da liberdade do cidadão frente ao poder.
Por outro lado, ao considerar o direito de resistência,
individual e coletivo, como forma de garantia constitucional necessário
ao Estado de Direito e não como forma de exercício da soberania
popular, Bobbio reafirma sua convicção e lealdade ao pensamento
liberal, de indireta origem montesquieuiano.[37]
Bobbio unifica os de diferentes fenômenos de
contestação – ativos, passivos, de indivíduos e de
grupos, os da maioria dos trabalhadores e os da coletividade – sob a
fórmula “desobediência civil” (resistência
passiva). A inclusão de conflitos de indivíduos distintos, de
grupos diferentes, com motivações diversas na categoria
“desobediência civil” só encontra abrigo naquelas doutrinas
funcionais ao Estado liberal e à manutenção do status quo. Como bem diz Catalano, a
energia que poderia encontrar expressão institucional em um “poder
negativo” acaba sendo absorvida em um esquema similar ao dos girondinos
(2005).
Com
referência ao conceito de “poder negativo” no discurso de
Bobbio alguns pontos merecem ser destacados:
I. Bobbio parece confundir o veto com o tribunat rousseauiano: “Io intendo per «potere
negativo» potere di veto, cioè il potere, per dirla con Rousseau,
di quell’organo o di quella
persona che «non potendo far nulla, può tutto
impedire»” –. Na
concepção de Bobbio veto é o poder de impedir que uma lei,
um comando, uma ordem ou uma decisão seja implementada; manifesta-se
numa declaração de vontade; é geralmente
institucionalizado e habitualmente exercido no vértice (o veto do
Presidente com relação a uma lei aprovada pelo parlamento ou
aquele de um dos membros do Conselho de Segurança da ONU). O poder de
veto é quase sempre o resíduo de um poder que resiste à
morte e serve para manter o status quo.
Todavia, veto e tribunat são conceitos distintos. Rousseau usava a
expressão “droit
négatif” (numa referência ao «pequeno
Conselho» de Genebra) com referência ao veto exercido no
vértice e “pouvoir
négatif” com referência ao tribunat, que é um
particular poder que vem da base.
O tribunat rousseauniano
é instrumento da soberania do povo para a defesa da liberdade. Trata-se
de uma particular magistratura inserida no mecanismo dos poderes, externa e
estranha às funções do poder de legislar, de governar e
julgar com o “poder negativo” de tudo impedir. O tribunato
não tem uma função meramente jurisdicional nem é órgão
de controle de constitucionalidade, foi criado como alternativa ao
equilíbrio dos poderes.
Bobbio
sobrepõe a versão democrática do tribunat rousseauniano ao veto, que é a versão
liberal montesquieuniana do tribunat
e, ao mesmo tempo, reduz o poder tribunício (poder negativo indireto)
à categoria técnica, poder de veto.
II.
Equivocada ou coerentemente, Bobbio confunde “poder negativo” com
poder de veto: “Io intendo per
«potere negativo» potere di veto”. Sabe-se que veto e
“poder negativo” são poderes impeditivos. Pensamos, todavia,
que poder de veto e “poder negativo” são coisas distintas.
O
conceito de Bobbio sobre o poder de veto foi objeto de analise no
parágrafo anterior. Entendemos que, diferentemente do veto, o
“poder negativo” de vertente democrática rousseauniana
é o poder exercitado diretamente pelos cidadãos – na
secessão e na greve – e, indiretamente, por meio de instrumentos
como o tribunato.
III. A
definição de veto proposta por Bobbio decorre, certamente, da
distinção feita por Montesquieu entre “faculté de statuer” – faculdade de
criação do direito – e “faculté d’empêcher”
– faculdade de
impedir a aplicação do direito –. A confusão pode
ser atribuída à insuficiente elaboração
teórica e a imprecisão terminológica de Rousseau que usava
a expressão “droit
négatif”, de forma geral, para designar o poder de veto ora do
governo ora do povo. Rousseau é igualmente dúbio quanto ao uso da
expressão “pouvoir
négatif” com referência ao tribunato. Contudo, pode-se
dizer que Rousseau não confunde o poder de veto com o tribunat.
IV. No
Seminário de Sassari, em que Catalano era um dos coordenadores, Bobbio
ignorou terminantemente o conceito de “poder negativo” proveniente
da linha do pensamento que vai de Maquiavel a Rousseau, de Rousseau a Fichte e
que se encontra implícito no pensamento de Babeuf. O silêncio de Bobbio contribuiu
negativamente para o aprofundamento da discussão e o
aperfeiçoamento do conceito, que foi amplamente discutido no evento.
V. Além do pensamento
de Catalano, Bobbio ignorou as reflexões sobre “poder
negativo” de outros estudiosos italianos, como por exemplo: Pietro
Bonfante e Giuseppe Grosso.
VI. Para concluir, pensamos
que Bobbio podia ter aprofundado mais a contraposição entre o
esquema da divisão dos poderes de Montesquieu e o esquema que deriva,
grosso modo, de Maquiavel e Rousseau, da relação governo/povo.
De resto, concluo com Catalano:
O
estudo desse aspecto do pensamento e da ação dos
democráticos foi completamente descurado a partir do desenvolvimento do
liberalismo, uma vez que a instituição tribunícia
é, em definitivo, profundamente estranha ao ordenamento do estado de
direito liberal burguês e à sua divisão dos poderes. A
ideia de uma instituição política ‘impeditiva
transforma-se na de um simples controle de constitucionalidade, complementar da
divisão dos poderes (CATALANO, 1981, 149)
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[1] Texto elaborado para o V. Seminário Internacional de Direitos
Humanos da UFPB “Norberto
Bobbio: Democracia, Direitos Humanos e Relações
internacionais” (2009).
[2] O ponto de vista ex parte
populi de Bobbio não significa adesão à democracia
direta e participativa de Rousseau ou de Marx.
[3] Na época do Seminário de Sassari o movimento de
contestação operário e estudantil era muito intenso na
Itália. A propósito destes movimentos Bobbio comenta: «A
universidade italiana mostrara-se politizada – e mal politizada –
sobretudo nas Faculdades de Ciências Humanas. Politizada no sentido de
que a revolta dos estudantes (porque se tratou realmente de uma revolta)
ocorrera sob o lema “Tudo é Política” ou “A
política é tudo”. Mal politizada no sentido de que a
revolta contra o poder acadêmico, que também podia ter suas
razões, muitas vezes transformou-se em revolta contra a seriedade dos
estudos, contra a pesquisa levada a efeito com rigor, contra a cultura do
passado em nome da atualidade, na exaltação do mais desenfreado
tendencionismo, da leviandade, da improvisação; na
substituição do discurso fundamentado e documentado pelo
palavreado oco [...] Parecia chegado o momento de fazer entender aos estudantes
tão inflamados quanto despreparados que fazer política era outra
coisa [...] em suma, fazer da política um objeto de análise
racional e não apenas uma ocasião de desabafos passionais, de
projetos fantasiosos, de controvérsias desprovidas de finalidade e
infecunda» (bobbio, 1994, 3, Prefácio edição
brasileira).
[4] Sobre os cursos ministrados em Trento ver: PITTO, Cesare, 1970-1971, 788 s., cfr. Agostini, Giovanni, 2008, 173; 213;
215.
[5] Sobre a contraposição entre “liberdade dos
antigos” e “liberdade dos modernos” ver Reale, Miguel. Horizontes do direito e da história: estudos de filosofia do
direito e da cultura. 1ª edição.
São Paulo: Saraiva, 1956. 2ª edição, São
Paulo: Saraiva, 1997; Comparato,
Fabio K., in dhnet - Rede
de Direitos Humanos & Cultura, disponível em: <http://www.dhnet.org.br>. Acesso em 10 de maio 2010; Bignotto, Newton. 2003, 36-45.
[6] No mesmo sentido, Machado Pauperio afirma:
“freqüentemente as sanções jurídicas
organizadas contra o abuso do Poder não são suficientes para
conter a injustiça da lei ou dos governantes, pois estes, quando
extravasados de seus limites naturais, muitas vezes não podem ser
contidos por normas superiores que já não respeitam. Por isso,
reconhece-se aos governados, em certas condições, a recusa da
obediência. Esta, contudo, pode assumir um tríplice aspecto: a
oposição às leis injustas, a resistência à opressão
e a revolução” (Machado
Pauperio, A. O Direito
Político de Resistência. 2ª edição, Rio de
Janeiro: Forense, 1978, 11).
[7] Catalano apresenta outra versão do pensamento de Marx a
propósito do “terror” jacobino: “la «volontà» del «terrorismo
rivoluzionario» lottò contro la «società
civile» della borghesia liberale, tentando di «sacrificarla a una vita politica antica»” (Catalano, 1971, 11-12).
[8] Bobbio trata da contraposição entre a
concepção liberal e a concepção democrática
do Estado no livro Liberalismo e
Democrazia, Milano: Franco Angeli, 1988 (BOBBIO. Democracia e Liberalismo. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasiliense, 2000).
[9] Para Catalano a origem da contraposição entre
“liberdade dos antigos” e “liberdade dos modernos”
encontra-se na crítica de Condorcet à constituição
romana e na afirmação de que os antigos não tinham
noção dos direitos individuais (Condorcet.
Esquisse d’un tableau
historique de progrès de l’esprit human, 1795. Cfr. Catalano, 1970-1974, 8-9).
[10] Bobbio afirma que Constant citava os antigos, mas tinha diante
de si um alvo bem mais próximo: Jean Jacques Rousseau (Bobbio, 2000, 8-9).
[11] Com referência à influência de
Maquiavel sobre o pensamento de Rousseau Catalano afirma: “Sia
l’elaborazione della teoria della sovranità popolare, sia poi
l’analisi delle istituzioni romane richiamate come modelli (comizi,
tribunato, dittatura, censura, «religione civile») sono certo
conseguenza di un’ammirazione che ha in sé una forte tensione di
utopia. Peraltro, la scelta come guide, nell’interpretazione storica, del
Machiavelli e del Sigonio, già esige una più approfondita
riflessione” (Catalano,
1970-1974, 13).
[12] A ideia do contrato social de Rousseau parece inspirada nos
conceitos de populus e pactum societatis de Cícero: Populus
autem non omnis hominum coetus quoquo modo congregatus, sed coetus multitudinis
iuris consensu et utilitatis communione sociatus (Cicero, De Re Publica. I.25.39);
concilia coetusque hominum iure sociati,
quae civitates appellantur (Cicero,
De Re Publica. VI.13.13); quid est enim civitas nisi iuris societas (Cicero, De Re Publica I.32.49).
[13] A ideia da soberania do povo encontra-se em ULPIANO, D. I. 4.1.
pr.: “Quod principi placuit, legis habet vigorem: utpote quum lege
Regia, quae de imperio eius lata est, populus ei et in eum omne suum imperium
et potestatem conferat”.
[14] Segundo Douglas Ferreira Barros “a
restituição da importância da noção de
liberdade que vê como positiva a participação dos
cidadãos nas decisões dos problemas políticos concebida
por Maquiavel, se deveu a Rousseau”
(Barros, 2010, 60).
[15] Rousseau se refere expressamente a Maquiavel quando trata do tribunat: “Depois do
estabelecimento dos tribunos [...] houve um verdadeiro governo e uma verdadeira
democracia” (Rousseau. Do contrato
social, 1962, l. III cap. X), 79.
[17] De acordo com Bignotto, Maquiavel contradiz explicitamente toda
a tradição italiana dos séculos XIII e XIV ao revelar uma
perspectiva absolutamente original do conflito como causa da liberdade:
“os conflitos são os produtores da melhor das
instituições” (Bignotto,
1991, 85).
[18] Na avaliação de Douglas Ferreira Barros a
concepção inovadora da liberdade está na
relação que estabelece Maquiavel entre a virtù e a fortuna
no âmbito da atividade política como forças em conflito, no
qual a fortuna governa metade de nossas ações e demonstra todo o
seu poder onde nenhuma virtù se apresenta para lhe impor
resistência. Segundo Barros, “as concepções de
virtù e de fortuna envolvidas com a ideia de conflito abrem uma
perspectiva que se poderia dizer decisiva para que se compreenda a
concepção moderna de liberdade política” (Barros, 2010, 55).
[19] Juan de Mariana. De rege et de regis
institutione, cap. VIII. Toledo, 1599. Cfr. Catalano, 1982, 147.
[20] Johannes Althusius.
Politica methodice digesta et exemplis sacris et profanis illustrata, 1610, 1614. Cfr. CATALANO, 1971, 56.
[21] Segundo Derathé (Derathé,
Robert, 2009, 151, 152 e 156), a influência do pensamento de Althusius
sobre o pensamento de Rousseau pode se avaliada a partir do conceito de
soberania popular. No Cap. XXXVIII de Politica
methodice digesta et exemplis sacris et profanis illustrata Althusius afirma:
“O exercício da soberania pertence ao povo. Não somente
não podemos dele subtraí-lo sem o seu consentimento, como
também, mesmo se o quisesse, o povo não teria o direito de dele
se despojar em benefício de quem quer que seja” No l. II, cap. VII
Contrato social Rousseau declara que “Aquele que redige as leis
não tem, portanto, ou não deve ter, nenhum direito legislativo, e
o povo mesmo não pode despojar-se quando quiser desse direito
incomunicável”.
[22] Catalano contrapõe a visão histórica da
Antiguidade da doutrina liberal com aquela de Rousseau: “les Romains se distinguèrent au-dessus de tous les
peuples de la terre par les égards du gouvernement pour les
particuliers, et par son attention scrupuleuse à respecter les droit
inviolables de tous les membres de l’état” (Rousseau, J.J. Discours sur l’économie politique, in Œuvres
Complètes, 1964, 256 ss. Cfr. Catalano, 1971, 129).
[23] “J’appelle
faculté de statuer, le droit d’ordonner par soi-même, ou de
corriger ce qui a été ordonné par un autre,
J´appelle “faculté d´empêcher”, le droit
de rendre nulle une décision prise par quelque autre; ce qui
était la puissance des tribuns de Rome [...]
étoit ?était ? vicieuse, en ce qu´elle
arrêtoit/arrêtait ? non seulement la législation, mais
même l´exécution: ce qui causoit/causait des grands maux” (Montesquieu. De
l'esprit des lois (1758) –
“De La constitution
d’Angleterre – Laurent Versini. Paris: Éditions
Gallimard, 1995, l. XI, cap. VI).
[24] Derathé confronta o pensamento de Rousseau com o de
Montesquieu relativamente à soberania do povo e a divisão dos
poderes: “Rousseau formulou no Contrato
social o princípio da soberania do povo, como Montesquieu havia
formulado no Espírito das leis
o princípio da separação dos poderes” (2009, 87.)
[25]
Johann Gottlieb Fichte. Grundlage des Naturrechts nach Principien der
Wissenschaftslehre, I (I Ed. Jena-Leipzig ,1796) in “Sämmtliche Werke”, 3
(Berlin 1845), 180 s. Cfr. Catalano,
1971, 91.
[26] De acordo com Catalano, as diferenças acerca do tribunat rousseauiano encontram
explicação no quadro da evolução do pensamento de
Fichte, particularmente, no que se refere ao poder necessariamente permanente
dos Ephoren, cujo exercício
é concebido de maneira restritiva. Afirma, a seguir, que a carga
democrática do instituto fichtiano é aclarada pelas
reações que parte da obra Grundlage
des Naturrechts dedicada ao eforato teve entre seus contemporâneos e,
posteriormente, Fichte, J. G. Gesamtausgabe, l. 3, Stuttgart, 1996,
302 ss (Catalano, 1971, 92 e n.
9).
[27] Déclaration des droits de
l’homme et du citoyen. Disponível em: www.assemblee-nationale.fr/histoire/.../1789.asp.
Data de acesso: 25/02/2011.
[28] Conforme anota Catalano, há diferenças entre o
pensamento de Rousseau e Fichte a respeito do tribunat, particularmente, no que se refere ao poder
necessariamente permanente dos Efhoren,
cujo exercício é concebido de forma restritiva (Catalano, 1971, 92).
[29] Para Catalano o uso da palavra Ephorat no lugar de tribunato indica o vínculo de Fichte com
a pré-rousseauiana doutrina de Calvino e de Althusius (Catalano, 1971, 99 ss. Cfr. Lobrano, (1994) – 1996, 315, e
312, n. 56.
[30] Theodor Mommsen.
Storia di
Roma antica, trad.
it. de Römische Geschichte 1ª ed., I, vol (1854), de D.
Baccini, G. Burgisser e G.
Cacciapaglia, I, 4ª ed. (Firenze, 1967), 342. Cfr. LOBRANO, 1983, 341 e n. 121.
[31] Sobre Babeuf, ver Robert Barrie Rose (rose, r. B. 1978), em especial, os capítulos: The party of the
Plebeians (171-184), Communism (185-204) e The people’s tribune (205-225).
[32] Gracchus
Babeuf. Le Correspondant Picard, novembro, 1790; Manifeste
des plébéiens, in Le
Tribun du peuple, nº 35, novembro 1795. Cfr. Catalano, 1971, 21.
[33] “[...] C’est par la Grève
générale que les plébéiens forcèrent les
patriciens de la vieille Rome à leur accorder la nomination des tribuns
du peuple chargés de veiller à la répartition
équitable des terres; or qui put le moins eût pu les plus:
c’est-à-dire la capitulation complète de
l’aristocratie parasitaire et voleuse [...]” Jean Allemane. Le socialisme en France. Paris 1900, 39 s. (um escrito em
referencia ao Congresso de 2 de outubro de 1891) Cfr. Catalano, 1971, 21-22.
[34] Segundo Antonio Guarino a secessio
plebis de 494 a.C. pode ser considerada a primeira greve da
história, e Menenio Agrippa Lanato, o cônsul (440 a.C.) que
convenceu a plebe a dialogar com os patrícios, um remoto precursor do
direito do trabalho (Guarino, A. Menenio Agrippa, in “Il
Mattino” 302, XI 1995, 3, cfr. lobrano,
1983, 200, n. 150).
[35] “O poder sindical, com a arma da greve, entrou na
estrutura da sociedade e do estado moderno como o poder tribunício na civitas romana, [...] este meio pode ser
comparado às secessões e à intercessio por sua direta
função paralizadora” (tradução nossa)
[36] Sobre a liberdade moderna, Douglas Ferreira Barros afirma:
“a liberdade depois do liberalismo está associada à defesa
do direito de propriedade dos cidadãos e dos seus interesses
particulares e não necessariamente vinculada aos problemas
públicos, e jamais seria fruto da relação entre os grupos
que disputam o poder político. Para os liberais clássicos,
também os de nossa época, o grande inimigo da liberdade é
o Estado que, em benefício de interesses supostamente coletivos e
públicos, deseja intervir nos interesses particulares dos
indivíduos, impedindo-os de se desenvolverem segundo os dons e as
capacidades que lhes foram dados pela natureza. Não é por outro
motivo que um certo consenso entre pensadores do século 20,
filósofos e outros afirme que os interesses da sociedade devam ser
resolvidos pelas forças de mercado – que constituiria a terra natal
e o lugar por excelência da liberdade civil. Segundo essa
acepção liberal, os conflitos entre pobres e ricos, enfim, a
relação fundamental instauradora da política na
perspectiva maquiaveliana, é que seriam os verdadeiros empecilhos ao
avanço da sociedade e á geração de
benefícios mais úteis para o cidadão” (Barros, 2010, 60).
[37] Deve-se recordar o democrata Pietro Ellero (um dos fundadores da
Escola Positiva de Direito Penal) que, inspirando-se na
constituição romana e na instituição
tribunícia, considerava inerente à soberania popular o direito de
resistir e de se insurgir contra a opressão. Cfr. Lobrano, 1983, 28-29.