ds_gen N. 7 – 2008 – Tradizione Romana

 

?attid=0Ana Lucia de Lyra Tavares

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

 

Elementos romanos na noção de espaço

público em Hannah Arendt

 

 

Sommario: 1. Introdução. – 2. Identificação dos elementos romanos na concepção arendtiana de espaço público – 2.1. O caráter sagrado da fundação. – 2.2. A tradição e a autoridade. – 2.3. O espaço público agonístico. – 2.4. O espaço público condicionador de comportamentos. – 3. Validade desses elementos romanos no mundo moderno. – 3.1. O mundo novo: o exemplo norte-americano. – 3.1.1. O caráter sagrado da fundação. – 3.1.2. A tradição e a autoridade. – 3.2. Novas dimensões de elementos conformadores do espaço público. – 3.2.1. O espaço da comunicação virtual. – 3.2.2. O espaço sagrado. – 3.2.3. Os espaços das civilizações. – 4. À Guisa de Conclusão.

 

 

1. – Introdução

 

A originalidade e a permanência da obra de Hannah Arendt (1906-1975) têm ensejado inúmeros estudos atuais, com riqueza de reinterpretações, à luz de descobertas de trabalhos não publicados daquela que se recusara a ser considerada como filósofa política, desde que rompera, em 1933, com as correntes filosóficas, preferindo, antes, ser incluída entre as teóricas políticas[1]. Sublinha Anne Amiel[2] que estão vinculadas à biografia pessoal de Arendt a ruptura com a filosofia e a própria idéia de ruptura. Para ela fora cortado o fio da tradição com a ascensão do nazismo, interrompendo toda uma trajetória intelectual à base dos ensinamentos dos “scholars” alemães, mostrando-lhe que a ruptura não era um simples pensar, mas uma realidade palpável, uma experiência histórica e pessoal.

A sua obra, portanto, é fruto de uma reflexão ancorada na realidade traumatizante que vivenciou, sem que se exima de buscar soluções para um novo mundo. O interesse que revela pelas civilizações antigas, notadamente a grega e, sobretudo, a romana, não implica uma postura nostálgica e desencantada, de que fora acusada, mas uma busca de resposta às questões contemporâneas nas matrizes que reputou dignas de melhor exame. Arendt constituiu-se numa exceção entre os que, como Heidegger, seu mestre, fixaram-se nos aspectos negativos da experiência romana[3].

O nosso objetivo, no presente texto, é o de destacar os elementos que esta autora extraiu da história da antiga Roma para formar a sua concepção de “espaço público”, cujas transformações constituem o tema dessa pesquisa coletiva. Vale lembrar, com Rémi Brague, que a experiência romana é, antes de tudo, uma experiência do espaço[4].

Dividimos em duas partes o estudo que se segue. Na primeira, buscamos identificar os elementos principais dessa fonte romana de Hannah Arendt. Na segunda, precisamente para sublinhar a contemporaneidade de suas assertivas, propômo-nos a dar ênfase à validade desses elementos romanos na reconstrução do espaço público no mundo moderno.

 

 

2. – Identificação dos elementos romanos na concepção arendtiana de espaço público

 

Preliminarmente, vale recordar a ênfase que Hannah Arendt confere à própria especificidade da configuração do espaço público romano, no qual se projetam, nitidamente, elementos do espaço privado (vejam-se os patres na constituição do Senado Romano). Todavia, como ela mesma ressalva, se a vida em comunidade privada decorria da necessidade, a vida na civitas, no espaço público, era uma exigência da liberdade. Se no privado as relações se davam em planos desiguais, no público visava-se à igualdade[5].

Os três elementos que, de plano, se destacam na análise de Hannah Arendt sobre as virtudes da civilização romana retratadas na noção de espaço público são: o caráter sagrado da fundação, a autoridade e a tradição[6]. Optamos por focalizar separadamente estes três elementos, aditando-lhes outros dois: a natureza agonística do espaço público em Roma e o reconhecimento de um espaço comportamental, que, também, integram aquela concepção.

 

2.1. – O caráter sagrado da fundação

 

O termo religião, conforme sublinha Hannah Arendt, em Roma, significava, literalmente, re-ligare: ser ligado ao passado, obrigado com o enorme, quase sobrehumano e por conseguinte sempre lendário esforço de lançar as fundações, de erigir a pedra angular, de fundar para a eternidade[7]. E, em trecho anterior, nota: No âmago da política romana (...) encontra-se a convicção do caráter sagrado da fundação, no sentido de que, uma vez alguma coisa tenha sido fundada, ela permanece obrigatória para todas as gerações futuras. Participar na política significava, antes de mais nada, preservar a fundação da cidade de Roma. Eis a razão por que os romanos foram incapazes de repetir a fundação de sua primeira polis na instalação de colônias, mas conseguiram ampliar a fundação original até que toda a Itália, e por fim, todo o mundo ocidental estivesse unido e administrado por Roma, como se o mundo inteiro não passasse de um quintal romano. Do início ao fim, os romanos destinavam-se à localidade específica dessa única cidade, e, ao contrário dos gregos, não podiam dizer em época de emergência ou de superpopulação: “Ide e fundai uma nova cidade, pois onde quer que estejais sereis sempre uma polis”. E, acrescenta, no mesmo trecho: não os gregos, e sim os romanos, estavam realmente enraizados ao solo, e a palavra pátria deriva seu pleno significado da história romana.

Em seu comentário, Anne Amiel destaca a tese de Arendt relativa ao caráter sagrado da fundação para os romanos. Trata-se de um acontecimento único, irrepetível, diversamente do caráter repetível da polis, cuja fundação era um acontecimento comum para os gregos, sem que a preocupação de preservar e de ampliar o ato da primeira implantação de uma cidade os guiasse[8]. Como sublinha Arendt, não os gregos, mas os romanos estavam enraizados ao solo, presos às suas origens. No termo pátria, de matriz romana, está refletida a noção de santidade do lar, sob a autoridade de um pater. E não é por acaso que os deuses mais profundamente romanos eram Jano, o deus do princípio (daí o nome do primeiro mês do ano) e Minerva, a deusa da recordação[9].

A extensão da transcrição anterior justifica-se, a nosso ver, pela ênfase que Hannah Arendt confere ao simbolismo de um espaço público sagrado, para cuja preservação e ampliação estavam convocadas as futuras gerações.

Por sua vez, o elemento sagrado de que se reveste a noção romana de espaço público, está vinculado a dois outros: a autoridade e a tradição. Melhor dizendo, a autoridade da tradição.

 

2.2. – A tradição e a autoridade

 

Sob este ângulo, também, reportamo-nos, diretamente, ao texto de Hannah Arendt: a palavra auctoritas é derivada do verbo augere, aumentar, e aquilo que a autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os anciãos, o Senado, ou os patres, os quais a obtinham por descendência e transmissão (tradição) daqueles que haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os antepassados chamados pelos romanos de maiores[10]. E, complementa: A autoridade, em contraposição ao poder (potestas), tinha suas raízes no passsado, mas esse passado não era menos presente na vida real da cidade do que o poder e a força dos vivos[11]. Em suma, observa: Ao contrário do nosso conceito de crescimento, em que se cresce para o futuro, para os romanos o crescimento dirigia-se no sentido do passado (...)[12].

É precisamente no reconhecimento da grandeza dos antepassados que a autoridade reveste-se de uma natureza educativa, e a seguinte reflexão de Hannah Arendt visa ao mundo contemporâneo: politicamente, a autoridade só pode adquirir caráter educacional se se admite, com os romanos, que, sob todas as circunstâncias, os antepassados representam o exemplo de grandeza para cada geração subseqüente, que eles são os maiores, por definição[13].

E onde se encontra a autoridade para os romanos? Salienta Hannah Arendt que se o poder está no povo, a auctoritas, oriunda de augere, de auspicius, e que é o aumento do passado, reside no Senado, na forma cristalizada do adágio cum potestas in populo auctoritas in senatu sit[14].

 

2.3. – O espaço público agonístico

 

Em sua obra A Condição humana, Hannat Arendt se estende sobre esta concepção, romana, é verdade, mas sobretudo grega, de espaço público, correspondente a local de desempenho e de exibição das qualidades do cidadão, conforme pudemos salientar no primeiro trabalho desenvolvido no quadro da presente pesquisa[15]. Trata-se de um espaço competitivo e heróico, em que os indivíduos buscam reconhecimento e aplausos.

Destaca Seyla Benhabib que o interesse de Arendt por esta noção agonística de espaço público - de dimensões topográficas e institucionais bem definidas, e que sobressai em sua obra sobre as Origens do Totalitarismo, diversa da noção de espaço associativo, exposta em A Condição Humana, que independe de um espaço físico, configurado tão somente pela ação humana concertada para determinado fim - não deve ser considerado como uma postura nostálgica, relativamente ao passado perdido, mas como uma tentativa de pensar a história humana através de fragmentos desse passado[16]. Acrescenta a mesma Professora de Política e Filosofia, da New School for Social Research, que essa concepção agonística de espaço público só seria possível nas condições de homogeneidade política e moral das sociedades grega e romana, com revelações ineqüívocas de valores individuais. Modernamente, tal concepção seria inadequada, dada a inexistência de tais condições. Ao contrário, complementa Benhabib, a predominância do anonimato, da diversidade, sob todos os ângulos, e, sobretudo, a luta por um espaço público equivalente à luta pela justiça demonstram a inviabilidade de aplicar-se aquela concepção agonística ao mundo moderno[17].

 

2.4. – O espaço público condicionador de comportamentos

 

Referindo-se à natureza pragmática dos romanos, Arendt relembra a transformação da herança grega, no campo da filosofia, e a destinação utilitária dada pelos romanos àquela herança. Desta forma, a filosofia passa a ser valorizada na medida em que é uma “arte de viver”, e não uma teoria inaplicável. No seu entender, foram sobretudo Lucrécio e Cícero que transformaram a filosofia grega em algo essencialmente romano - o que significou, entre outras coisas, algo essencialmente prático[18].

No quadro da utilização do espaço público, torna-se bastante visível este pragmatismo. Como tivemos ocasião de examinar em trabalho anterior, o urbanismo romano, reproduzido nas terras conquistadas, possuía nítidas finalidades políticas, visando a certos condicionamentos comportamentais, estando, portanto, muito longe de limitar-se a uma mera distribuição física de locais e prédios públicos[19].

 

 

3. – Validade desses elementos romanos no mundo moderno

 

3.1. – O mundo novo: o exemplo norte-americano

 

Explicitava Hannah Arendt, em simpósio sobre a sua obra, que o retorno à Antiguidade greco-romana decorreu de seu desejo de refazer o percurso dos revolucionários do século XVIII que buscavam não o burguês, mas o cidadão. E acrescentava: (...) sinto a mesma necessidade do antigo que sentiram os grandes revolucionários do século dezoito[20].

E este desejo de encontrar as bases de um mundo novo decorria, como é sabido, de sua sofrida experiência pessoal, do seu desenraizamento, exilada da Alemanha, pela perseguição aos judeus feita pelo totalitarismo nazista e testemunha do totalitarismo stalinista. A derrocada do seu mundo e o reconhecimento da procedência da tese de Santo Agostinho de construção de um mundo novo, ele que também fora testemunha do desaparecimento do Império romano, e a quem Arendt consagrou sua tese de doutorado[21], publicada, pela primeira vez em 1929, faziam-na pensar na possibililidade de superação das ruínas e na construção de um novo mundo. Refugiando-se nos Estados Unidos e tendo obtido a nacionalidade americana em 1951, ela aprofundou sua reflexão sobre os fundamentos daquela realidade diversa.

Vale lembrar que nela perdura a noção romana de mundo, isto é, de um espaço visível no qual se travam relações e que se constitui num agir comum. Recorde-se que o termo mundus para os romanos designava um fosso, uma via de comunicação entre o mundo dos mortos, o dos vivos e o dos deuses subterrâneos[22]. Assim, o mundo, este espaço que permite as relações, é uma construção permanente. O advento da ruptura, pois, não impede que o mesmo seja reconstruído. Na procura dos fundamentos dessa reconstrução, Hannah Arendt remonta ao mundo romano, que fornece elementos consistentes e duradouros, com a associação entre religião, autoridade e tradição. A sua análise detém-se, então, na experiência norte-americana e na observação da existência ou não daqueles três elementos.

Poderíamos acrescentar que outros elementos da experiência romana a atrairam em sua busca de fontes de uma reconstrução do mundo, elementos suscetíveis de constituirem-se em obstáculo aos totalitarismos, destacando-se, de um lado, a idéia das formas de interação de uma pluralidade de indivíduos (e não de massa popular) num determinado espaço político, e, de outro, as virtudes e o espírito público do cidadão da Roma republicana[23].

 

3.1.1. – O caráter sagrado da fundação

 

A história dos Estados Unidos revela a Arendt que é possível transpor-se a idéia de fundação para um mundo novo. O exemplo americano dos pais fundadores foi alvo de inúmeras evocações, entre elas, a seguinte:

(...) É também provável que os pais fundadores, por terem escapado ao desenvolvimento europeu da nação-estado, tenham permanecido mais próximos do espírito romano original. Mais importante talvez foi o ato de fundação, ou seja, a colonização do continente americano ter precedido à Declaração da Independência, de tal forma que a estruturação da Constituição, recaindo nas cartas e convenções existentes, confirmou e legalizou um organismo político já existente mais do que o refez de novo[24].

Tal como em Roma, a fundação dos Estados Unidos é constantemente renovada e ampliada, com a extensão do seu campo de influência, em que avultam o predomínio econômico, a posse das novas tecnologias e do espaço das comunicações. As modernas formas de vida não destróem as bases da fundação, mas as ampliam e fortalecem. Não foi por acaso que Raymond Aron referiu-se aos Estados Unidos como La République Impériale.

 

3.1.2. – A tradição e a autoridade

 

A concepção de um mundo novo que desponta no povoamento das terras norte-americanas, como a própria nota de um dólar consigna (Novus Ordo Seclorum), com a aceitação geral dos recém-chegados, sem qualquer discriminação, sem pobreza e sem opressão, não impede o reconhecimento de uma continuidade histórica. Não obstante suas injustiças, que devem ser corrigidas, é impossível ignorar o Velho Mundo[25].

A idéia de necessidade da ruptura advém da constatação do fracasso da Velha Ordem européia em corrigir as injustiças sociais e econômicas. Tal ruptura, todavia, não é incompatível com a busca de fontes de inspiração na história humana e, pelo que nos interessa realçar aqui, foi precisamente na fonte romana que hauriram os pais fundadores.

Esse vínculo, destacado por Hannah Arendt, foi também objeto de exame por parte de outros estudiosos. Em relação a este tema, a autora do presente texto deseja tornar público o seu reconhecimento ao Professor José Ribas Vieira, do Departamento de Direito da PUC-Rio e membro do Grupo que realizou esta pesquisa, o qual, ao retornar dos Estados Unidos, após um Simpósio sobre a Administração da Justiça, possibilitou-lhe, generosamente, o acesso a uma obra fundamental para o seu estudo, qual seja o trabalho do Professor Mortimer Sellers que versa sobre a ideologia romana na Constituição americana[26].

Como sublinha este ilustre Professor da Universidade de Baltimore, a idéia de república, tal como exposta pelos que conceberam o modelo constitucional norte-americano, provém da noção de res publica, do governo pelo povo, em busca do bem comum, com base nas leis para assegurar a liberdade. John Adams em sua defesa das Constituições dos Estados Unidos (Defence of the Constitutions of The United States of America), trabalho divulgado às vésperas da Convenção Constitucional dos Estados americanos Unidos, reportava-se a Cícero e louvava Roma como a mais sábia das Repúblicas e como o mais nobre povo[27].

Relembra, ainda, o Professor Sellers que John Adams era tido como o doutrinador favorito dos fundadores do primeiro partido Republicano, na Pensilvânia, os quais propugnavam um governo com base na soberania popular e um sistema de equilíbrio de poderes similar ao que que presidira à distribuição de poderes entre o Senado e os Comitia da Roma Republicana.

É interessante, também, a evocação do Professor Sellers dos pseudônimos da Roma republicana utilizados durante os debates sobre o projeto de Constituição dos Estados Unidos, entre eles: Publius, Brutus, Agrippa, Cassius, Cato[28], bem como os temas e símbolos romanos na iconografia política dos revolucionários americanos[29].

Em sua análise extremamente cuidadosa e fundamentada, o Professor Sellers percorre os debatedores que mais se destacaram ao longo da elaboração do texto constitucional norte-americano, salientando os vínculos com o pensamento republicano romano, notadamente: a busca da justiça e do bem comum pelo império da lei, um governo de equilíbrio de poderes, compreendendo os órgãos de soberania popular, um senado atuante e governantes eleitos.

Hannah Arendt também se refere à inspiração romana dos conceitos de John Adams, dando mais realce à sua invocação da associação feita pelos romanos entre liberdade e ação: e entre liberdade e fundação: a liberdade romana era um legado transmitido pelos fundadores de Roma ao povo romano; sua liberdade ligava-se ao início que seus antepassados haviam estabelecido ao fundar a cidade, cujos negócios os descendentes tinham que gerir (....). Os historiadores romanos sempre se sentiram presos ao início da história romana, pois esse início continha o elemento autêntico da liberdade romana, tornando, assim, política a sua história; partiam, o que quer que tivessem de relatar, ab urbe condita, da fundação da cidade, garantia da liberdade romana[30].

Da mesma forma, o modelo norte-americano revitaliza-se, sem que se perca de vista o ideário dos fundadores, cujos princípios são como que faróis orientando a renovação, via Judiciário, da Constituição de 1787. A Suprema Corte detém o poder de julgamento e, precisamente, a conciliação deste, com a opinião que emana do Senado é que constitui a sabedoria dos Fundadores em conferir um equilíbrio ao governo, depurando os interesses em luta na Câmara de representação popular[31].

A convivência da tradição com o novo é representada pelas relações entre o Senado e a Câmara de Representantes. Tal como em Roma, o primeiro detém a auctoritas, o peso da opinião imparcial de seus membros, vinculada à manutenção da tradição. A última detém a potestas in populo, que emana dos grupos de interesse partidário. Sublinha Arendt: Esta distinção romana era bem conhecida dos Pais Fundadores (...). Era este o motivo pelo qual estavam tão interessados em ter um Senado, muito mais do que qualquer pensador europeu. Sentiam a necessidade de filtrar as opiniões que emergem diretamente dos partidos através de um corpo que estivesse acima da influência direta[32].

Note-se a constatação de Arendt de que a idéia da auctoritas, poder que implica acatamento, obediência, sem coerção, por respeito à tradição, à isenção, desapareceu do espaço público moderno, privando-o do elemento suscetível de conferir-lhe estabilidade[33].

A seguinte observação de Hannah Arendt sintetiza as suas conclusões sobre a aproximação entre a Roma republicana e o pensamento dos revolucionários americanos: Pois se estou certa ao suspeitar que a crise do mundo atual é basicamente de natureza política, e que o famoso “declínio do Ocidente” consiste fundamentalmente no declínio da trindade romana de religião, tradição e autoridade, com o concomitante solapamento das fundações especificamente romanas de domínio político, então as revoluções da época moderna parecem gigantescas tentativas de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos políticos, aquilo que durante tantos séculos conferiu aos negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza.

Dessas tentativas, somente uma, a Revolução Americana foi bem sucedida: os pais fundadores, como - o que é bem peculiar - podemos ainda chamá-los, fundaram um organismo político inteiramente novo prescindido da violência e com o auxílio de uma Constituição. E tal organismo durou pelo menos até o dia de hoje, a despeito do fato de em nenhum outro local o caráter especificamente moderno do mundo atual produzir expressões tão extremas em todas as esferas não-políticas da vida como nos Estados Unidos[34].

 

3.2. – Novas dimensões de elementos conformadores do espaço público

 

Nos desdobramentos que se seguem, procuramos focalizar aspectos que figuram nas análises de Hannah Arendt de modo mais esparso, sem que, obviamente, fosse estabelecida uma conexão com a experiência romana, mas que constituem precisamente a revelação da falta que a trilogia “caráter sagrado da fundação, autoridade e tradição” fazem ao mundo contemporâneo.

 

3.2.1. – O espaço da comunicação virtual

 

A existência de um espaço público que induzisse comportamentos e que condicionasse formas de comunicação já era observada em Roma. Não se ignora que as novas técnicas de comunicação vêm criando espaços específicos de interação dos indivíduos, com evidentes efeitos no espaço público, em especial em sua manifestação como espaço político.

Os meios de debate via teleconferências, o intercâmbio e a rapidez da comunicação mundial pela Internet, as próprias consultas aos telespectadores sobre assuntos de interesse público e que têm repercutido sobre a tomada de decisão dos governantes, tudo evidencia o avanço, extremamente rápido, dos meios de comunicação, sem que haja a contrapartida da qualidade do conteúdo da comunicação em si. Ao observar esse fenômeno, Hannah Arendt assinalava que um belo dia, uma humanidade altamente organizada e mecanizada poderia concluir, da forma mais democrática, isto é, pela maioria, que a humanidade como tal deveria eliminar uma parte dela mesma[35].

Comunicar, para além da bateria de suas tecnologias, é reconhecer a existência de uma obscuridade intransponível, de uma separação irremediável e é, ao mesmo tempo, visar à constituição de um espaço público[36].

 

3.2.2. – O espaço sagrado

 

Como vimos acima, a religião para os romanos, na evocação de Hannah Arendt, significava literalmente re-ligare, ser ligado ao passado, donde o caráter sagrado da fundação, que visava a projetar-se na eternidade.

Por outro lado, a vivência religiosa em si era intimamente associada ao espaço doméstico. Os deuses lares e manes revelam a existência de um espaço sagrado, já examinado por Fustel de Coulanges[37].

Acentua Zeny Rosendahl, em estudo extremamente interessante sobre esta inter-relação entre o sagrado e o espaço, que, além dos conceitos de ponto fixo e de entorno que o espaço sagrado implica, tais espaços são demarcados pelo poder da mente de extrapolar muito além do percebido. Os homens não apenas criam espaços sagrados, como também procuram materializar seus sentimentos, imagens e pensamentos neles[38].

Na verdade, espaço público e religião estão sempre intimamente associados. A palavra e a ação que se projetam num determinado espaço público estão ancoradas na trindade romana do sagrado, da tradição e da autoridade. A ausência de um desses elementos compromete a vivência democrática daquele espaço. Margaret Canovan relembra que Hannah Arendt estava convencida de que o totalitarismo não teria acontecido se aquela trindade tivesse sido preservada[39].

Para Arendt, a continuidade, após a queda do Império Romano, da tríade sagrado/tradição/autoridade, se deu com a Igreja Cristã, cuja fundação repete, a seu ver, a de Roma[40].

É interessante recordar a observação de Arendt sobre as conseqúências da separação do poder político (exercido pelo Rei) do poder religioso (exercido pelo Papa), acarretando a perda de autoridade do poder político, o que a leva a concluir que a presença simultânea dos dois poderes seria necessária para um governo estável[41]. Tem-se aqui o sentido de religião como vínculo com a tradição.

Vale notar que espaço público e fé também alicerçaram a fundação dos Estados Unidos, com o êxodo da Inglaterra dos Pais Fundadores, os Pilgrims Fathers, revelando, da mesma forma, a integração dos elementos política e religião, entrelaçados, mais do que nunca, na vida dos povos do Oriente Médio[42].

Esta associação entre espaço público e religião manifesta-se hoje na dimensão de um espaço global.

 

3.2.3. – Os espaços das civilizações

 

A ampliação gradativa do espaço público, não apenas em decorrência do aprimoramento das técnicas de comunicação, mas do próprio alargamento de suas fronteiras é constatação corrente em inúmeros estudos sobre o tema. O eminente Professor Nelson Saldanha abre o seu primoroso trabalho sobre o declínio das nações no século XX, com a seguinte citação extraída de livro do saudoso Professor Afonso Arinos: Salazar e De Gaulle são as duas poderosas expressões finais dos Estados nacionais, à maneira do Século XIX, ao passo que Churchill foi a primeira expressão dos Estados Unidos da Europa[43].

Este alargamento do espaço público pode ser observado na passagem dos Estados Nacionais para um outro patamar, Estados Multinacionais, sobretudo com a reunião, em torno das superpotências, de agrupamento de várias nacionalidades, sem que a própria superpotência constitua uma nação na concepção espiritual e cultural do século passado. Como bem acentua o Professor Nelson Saldanha, ao invés dos componentes culturais que sedimentam as nações, passam para primeiro plano os elementos econômicos e técnicos que esvaziam o sentimento nacional: E quando o elemento cultural (...) cede vez aos componentes econômicos e técnicos na caracterização da vida histórica (...), os traços nacionais perdem lugar para a uniformização e a padronização. O mundo se acha entregue a grandes escritórios internacionais, desligados do “sentimento nacional”[44].

Se, por um lado, a aproximação de culturas distintas, de espaços públicos de origem diversa, constituem fenômenos fascinantes para os que analisam o mundo contemporâneo, por outro, na medida em que se intensificam os intercâmbios de ordem vária, com o perpassar de correntes globalizantes, percebe-se uma reação natural e contrária de afirmação ou de busca de identidades, basicamente nas raízes religiosas[45], que pode suscitar confrontos totais. Sob esta ótica, de menção obrigatória é a obra de Samuel Huntington, O choque das civilizações[46].

Sob o prisma que nos interessa no presente texto, vale observar que a caracterização inequívoca de um espaço público europeu vincula-se à preservação de um legado greco-romano e judaico, face a outras identidades mais proemientes, notadamente a islâmica[47].

Não obstante a intensificação das iniciativas globalizantes, visando a associar a integração cultural àquelas de ordem econômica e tecnológica[48], o que se observa é a crescente defesa do multiculturalismo, visto que, como observa Huntington, um império global é impossível[49].

 

 

4. – À Guisa de Conclusão

 

Parece-nos clara a validade, ainda nos dias de hoje, dos elementos romanos ressaltados por Hannah Arendt na caracterização do espaço público. Basta a ausência de um deles (o caráter sagrado da fundação, a tradição e a autoridade) para tornar este espaço efêmero e vulnerável.

As observações de Hannah Arendt aqui ressaltadas concorrem para o reconhecimento da necessária presença simultânea desses três elementos, suscetíveis de superarem a instabilidade e a incerteza que marcam os tempos atuais. Num cotejo entre as civilizações ocidental e oriental percebe-se, sem dificuldade que a primeira relegou a valorização do passado e da tradição a um segundo plano, sem buscar expandir as bases que a geraram, isto é, sem aumentar a fundação, ao passo que última preserva as suas origens culturais e as suas religiões, não obstante as correntes materialistas que, até recentemente, predominaram em muitas das culturas que a integram.



 

[1] Anne Amiel, Hannah Arendt, Politique et événement. PUF, 1996, 5.

 

[2] Ibid., 6.

 

[3] V. Rémi Brague, L’Europe, la voie romaine. Critérion, 1993, 35.

 

[4] Ibid., 37.

 

[5] V. A Condição Humana. Forense Universitária, 1995, 41-43.

 

[6] Cf. Jean- Claude Eslin, L’obligée du monde. Ed. Michalon, 1996, 114 e segs.

 

[7] V. Entre o passado e o futuro. Ed. Perspectiva, 1992, 162.

 

[8] Amiel, op. cit., 81.

 

[9] Entre o passado e o futuro, op.cit., 162.

 

[10] Ibid., 163 e 164.

 

[11] Ibid., 164.

 

[12] Ibid., 166.

 

[13] Ibid., 161.

 

[14] Anne Amiel, op. cit., 81, e Rémi Brague, op. cit., 39.

 

[15] Cf. O espaço público e as relações entre os poderes instituídos e os da sociedade civil, in Direito, Estado e Sociedade, n° 7, 1995, Departamento de Direito da PUC-Rio, 2.

 

[16] Seyla Benhabib, Models of Public Space, in: Habermas and the Public Sphere. Ed. by Craig Calhoun, The MIT Press, Cambridge,1992, 76.

 

[17] Ibid., 79.

 

[18] Cf. de Hannah Arendt, A Vida do Espírito. Ed. Relume Dumará, 1995, 116.

 

[19] Apresentamos o estudo “A Urbs e a noção de espaço público” no Seminário sobre Direito Público Romano e Política, realizado, conjuntamente, pelo Departamento de Direito da PUC-Rio e Fundação Casa de Rui Barbosa, em agosto de 1996. Os trabalhos resultantes desse encontro figuram na publicação Direito Público Romano e Política, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2005.

 

[20] V. Hannah Arendt, De la historia a la acción (Introducción de Manuel Cruz). Ediciones Paidós, Barcelona, 1995.

 

[21] Hannah Arendt, Le concept d’amour chez Augustin. Ed. Payot et Rivafes, Paris, 1996.

 

[22] Norbert Rouland, Rome, démocratie impossible?. Babel, 1994, 22, apud Jean-Claude Eslin, op. cit., 17, nota 1.

 

[23] V. Margaret Canovan, Hannah Arendt: a reinterpretation of her political science. Cambridge University Press, 1992, notadamente o capítulo sobre o novo republicanismo, em que sublinha a noção fundamental na obra de Hannah Arendt da pluralidade dos seres humanos e da existência de um espaço público no qual eles interagem (201-252).

 

[24] Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, op. cit., 185-186.

 

[25] Cf. Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, op. cit., 225-226.

 

[26] V. M.N.S. Sellers, American Republicanism: Roman ideology in the United States Constitution. New York University Press, 1994.

 

[27] Cf. Sellers, op. cit., 63.

 

[28] Ibid., 8.

 

[29] Ibid., 11.

 

[30] Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, op. cit., 215.

 

[31] Em sua análise da obra de Arendt, Anne Amiel ressalta que o espírito romano, que vincula fundação, ampliação e conservação, está preservado na função legal e de interpretação da Suprema Corte, e, trazendo à colação a própria Hannah Arendt, transcreve de sua obra On Revolution: a autoridade da Constituição americana reside na sua capacidade inerente de ser emendada e aumentada (Cf. Amiel, op. cit., 102).

 

[32] V. Hannah Arendt, De la historia a la acción, op. cit., 165.

 

[33] V. Sylvie Courtine-Denamy, Hannah Arendt. Hachette (Pluriel), 1997, 261, e João Maurício Leitão Adeodato, O problema da legitimidade: no rastro do pensamento de Hannah Arendt. Forense Universitária, Rio, 1989, 177.

 

[34] V. Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro, op. cit., 185.

 

[35] Hannah Arendt, Les origines du totalitarisme: l’impérialisme. Paris, 1982, apud AndrÉ Akoun, La communication démocratique et son destin. PUF, 1994, 149 (Tradução aproximada).

 

[36] V. André Akoun, op. cit., 150 (Tradução aproximada).

 

[37] V. Numa Denis Fustel de Coulanges, A Cidade Antiga, V, também, o trabalho de Zeny Rosendahl, Espaço e Religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro, UERJ, 1996.

 

[38] Zeny Rosendahl, op. cit., 33.

 

[39] V. Margaret Canovan, op. cit., 69; V., também, sua referência, na nota 23, aos trabalhos de Arendt What is authority? e Tradition and the Modern Age.

 

[40] V. Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, op. cit., 167-169 e a análise de Margaret Canovan sobre este ponto (op. cit., 219, 220).

 

[41] Entre o Passado e o Futuro, op. cit., 171.

 

[42] V. Zeny Rosendahl, op. cit., 54.

 

[43] Afonso Arinos, Planalto (Memórias). Rio de Janeiro, 1988, 149, apud Nelson Saldanha, O Declínio das Nações e outros ensaios. Recife, FUNDAJ, Ed. Massangana, 1990, 17.

 

[44] Nelson Saldanha, op. cit., 25.

 

[45] V. Gilles Kepel, La Revanche de Dieu. Seuil, 1991 e a entrevista por ele concedida ao Nouvel Observateur (3 a 9 de janeiro de 1991).

 

[46] V. Samuel Huntington, O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial. Ed. Objetiva, 1997.

 

[47] V. Rémi Brague, op. cit., 11.

 

[48] L’unité culturelle, in Nouvel Observateur.

 

[49] Samuel Huntington, op. cit., 405.