N. 7 – 2008 – Tradizione
Romana
Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro
Elementos
romanos na noção de espaço
público
Sommario: 1. Introdução.
– 2. Identificação
dos elementos romanos na concepção arendtiana de espaço
público – 2.1. O
caráter sagrado da fundação. – 2.2. A
tradição e a autoridade. – 2.3. O
espaço público agonístico. – 2.4. O
espaço público condicionador de comportamentos. – 3. Validade desses elementos
romanos no mundo moderno. – 3.1. O mundo novo: o exemplo
norte-americano. – 3.1.1. O caráter
sagrado da fundação. – 3.1.2. A
tradição e a autoridade. – 3.2. Novas
dimensões de elementos conformadores do espaço público.
– 3.2.1. O
espaço da comunicação virtual. – 3.2.2. O espaço sagrado.
– 3.2.3. Os
espaços das civilizações. – 4. À Guisa de
Conclusão.
A originalidade e a permanência da obra de Hannah Arendt
(1906-1975) têm ensejado inúmeros estudos atuais, com riqueza de
reinterpretações, à luz de descobertas de trabalhos
não publicados daquela que se recusara a ser considerada como
filósofa política, desde que rompera, em 1933, com as correntes
filosóficas, preferindo, antes, ser incluída entre as
teóricas políticas[1].
Sublinha Anne Amiel[2]
que estão vinculadas à biografia pessoal de Arendt a ruptura com
a filosofia e a própria idéia de ruptura. Para ela fora cortado o
fio da tradição com a ascensão do nazismo, interrompendo
toda uma trajetória intelectual à base dos ensinamentos dos
“scholars” alemães, mostrando-lhe que a ruptura não
era um simples pensar, mas uma realidade palpável, uma experiência
histórica e pessoal.
A sua obra, portanto, é fruto de uma reflexão
ancorada na realidade traumatizante que vivenciou, sem que se exima de buscar
soluções para um novo mundo. O interesse que revela pelas
civilizações antigas, notadamente a grega e, sobretudo, a romana,
não implica uma postura nostálgica e desencantada, de que fora
acusada, mas uma busca de resposta às questões contemporâneas
nas matrizes que reputou dignas de melhor exame. Arendt constituiu-se numa
exceção entre os que, como Heidegger, seu mestre, fixaram-se nos
aspectos negativos da experiência romana[3].
O nosso objetivo, no presente texto, é o de destacar os
elementos que esta autora extraiu da história da antiga Roma para formar
a sua concepção de “espaço público”,
cujas transformações constituem o tema dessa pesquisa coletiva.
Vale lembrar, com Rémi Brague, que a experiência romana é,
antes de tudo, uma experiência do espaço[4].
Dividimos em duas partes o estudo que se segue. Na primeira,
buscamos identificar os elementos principais dessa fonte romana de Hannah
Arendt. Na segunda, precisamente para sublinhar a contemporaneidade de suas
assertivas, propômo-nos a dar ênfase à validade desses
elementos romanos na reconstrução do espaço público
no mundo moderno.
Preliminarmente, vale recordar a ênfase que Hannah Arendt
confere à própria especificidade da configuração do
espaço público romano, no qual se projetam, nitidamente,
elementos do espaço privado (vejam-se os patres na constituição do Senado Romano). Todavia,
como ela mesma ressalva, se a vida em comunidade privada decorria da
necessidade, a vida na civitas, no
espaço público, era uma exigência da liberdade. Se no
privado as relações se davam em planos desiguais, no
público visava-se à igualdade[5].
Os três elementos que, de plano, se destacam na
análise de Hannah Arendt sobre as virtudes da civilização
romana retratadas na noção de espaço público
são: o caráter sagrado da fundação, a autoridade e
a tradição[6].
Optamos por focalizar separadamente estes três elementos, aditando-lhes
outros dois: a natureza agonística do espaço público em
Roma e o reconhecimento de um espaço comportamental, que, também,
integram aquela concepção.
O termo religião,
conforme sublinha Hannah Arendt, em Roma, significava,
literalmente, re-ligare: ser ligado ao
passado, obrigado com o enorme, quase sobrehumano e por conseguinte sempre
lendário esforço de lançar as fundações, de
erigir a pedra angular, de fundar para a
eternidade[7]. E, em trecho anterior, nota: No âmago
da política romana (...) encontra-se a convicção do
caráter sagrado da fundação, no sentido de que, uma vez
alguma coisa tenha sido fundada, ela permanece obrigatória para todas as
gerações futuras. Participar na política significava,
antes de mais nada, preservar a fundação da cidade de Roma. Eis a
razão por que os romanos foram incapazes de repetir a
fundação de sua primeira polis na instalação de
colônias, mas conseguiram ampliar a fundação original
até que toda a Itália, e por fim, todo o mundo ocidental estivesse unido e administrado por Roma, como se o
mundo inteiro não passasse de um quintal romano. Do início ao
fim, os romanos destinavam-se à localidade específica dessa
única cidade, e, ao contrário dos gregos, não podiam dizer
em época de emergência ou de superpopulação:
“Ide e fundai uma nova cidade, pois onde quer que estejais sereis sempre
uma polis”. E, acrescenta, no mesmo trecho: não os gregos, e sim os romanos, estavam realmente enraizados ao
solo, e a palavra pátria deriva seu pleno significado da história romana.
Em seu comentário, Anne Amiel destaca a tese de Arendt
relativa ao caráter sagrado da fundação para os romanos.
Trata-se de um acontecimento único, irrepetível, diversamente do
caráter repetível da polis, cuja fundação era um
acontecimento comum para os gregos, sem que a preocupação de
preservar e de ampliar o ato da primeira implantação de uma
cidade os guiasse[8].
Como sublinha Arendt, não os gregos, mas os romanos estavam enraizados
ao solo, presos às suas origens. No termo pátria, de matriz romana, está refletida a
noção de santidade do lar, sob a autoridade de um pater. E não é por acaso
que os deuses mais profundamente romanos eram Jano, o deus do princípio
(daí o nome do primeiro mês do ano) e Minerva, a deusa da
recordação[9].
A extensão da transcrição anterior
justifica-se, a nosso ver, pela ênfase que Hannah Arendt confere ao
simbolismo de um espaço público sagrado, para cuja
preservação e ampliação estavam convocadas as
futuras gerações.
Por sua vez, o elemento sagrado de que se reveste a
noção romana de espaço público, está
vinculado a dois outros: a autoridade e a tradição. Melhor
dizendo, a autoridade da tradição.
Sob este ângulo, também, reportamo-nos, diretamente,
ao texto de Hannah Arendt: a palavra
auctoritas é derivada do verbo augere, aumentar, e aquilo que a
autoridade ou os de posse dela constantemente aumentam é a
fundação. Aqueles que eram dotados de autoridade eram os
anciãos, o Senado, ou os patres, os quais a obtinham por
descendência e transmissão (tradição) daqueles que
haviam lançado as fundações de todas as coisas futuras, os
antepassados chamados pelos romanos de maiores[10].
E, complementa: A autoridade, em
contraposição ao poder (potestas),
tinha suas raízes no passsado, mas esse passado não era menos
presente na vida real da cidade do que o poder e a força dos vivos[11].
Em suma, observa: Ao contrário do
nosso conceito de crescimento, em que se cresce para o futuro, para os romanos
o crescimento dirigia-se no sentido do passado (...)[12].
É precisamente no reconhecimento da grandeza dos
antepassados que a autoridade reveste-se de uma natureza educativa, e a
seguinte reflexão de Hannah Arendt visa ao mundo contemporâneo: politicamente, a autoridade só pode
adquirir caráter educacional se se admite, com os romanos, que, sob
todas as circunstâncias, os antepassados representam o exemplo de
grandeza para cada geração subseqüente, que eles são
os maiores, por definição[13].
E onde se encontra a autoridade para os romanos? Salienta Hannah
Arendt que se o poder está no povo, a auctoritas, oriunda de augere,
de auspicius, e que é o aumento
do passado, reside no Senado, na forma cristalizada do adágio cum potestas in populo auctoritas in senatu
sit[14].
Em sua obra A
Condição humana, Hannat Arendt se estende sobre esta
concepção, romana, é verdade, mas sobretudo grega, de
espaço público, correspondente a local de desempenho e de
exibição das qualidades do cidadão, conforme pudemos
salientar no primeiro trabalho desenvolvido no quadro da presente pesquisa[15].
Trata-se de um espaço competitivo e heróico, em que os
indivíduos buscam reconhecimento e aplausos.
Destaca Seyla Benhabib que o interesse de Arendt por esta
noção agonística de espaço público - de
dimensões topográficas e institucionais bem definidas, e que
sobressai em sua obra sobre as Origens do
Totalitarismo, diversa da noção de espaço associativo,
exposta
Referindo-se à natureza pragmática dos romanos,
Arendt relembra a transformação da herança grega, no campo
da filosofia, e a destinação utilitária dada pelos romanos
àquela herança. Desta forma, a filosofia passa a ser valorizada
na medida em que é uma “arte de viver”, e não uma
teoria inaplicável. No seu entender, foram sobretudo Lucrécio e
Cícero que transformaram a
filosofia grega em algo essencialmente romano - o que significou, entre outras
coisas, algo essencialmente prático[18].
No quadro da utilização do espaço
público, torna-se bastante visível este pragmatismo. Como tivemos
ocasião de examinar em trabalho anterior, o urbanismo romano,
reproduzido nas terras conquistadas, possuía nítidas finalidades
políticas, visando a certos condicionamentos comportamentais, estando,
portanto, muito longe de limitar-se a uma mera distribuição
física de locais e prédios públicos[19].
Explicitava Hannah Arendt, em simpósio sobre a sua obra,
que o retorno à Antiguidade greco-romana decorreu de seu desejo de
refazer o percurso dos revolucionários do século XVIII que
buscavam não o burguês, mas o cidadão. E acrescentava:
(...) sinto a mesma necessidade do antigo
que sentiram os grandes revolucionários do século dezoito[20].
E este desejo de encontrar as bases de um mundo novo decorria,
como é sabido, de sua sofrida experiência pessoal, do seu desenraizamento,
exilada da Alemanha, pela perseguição aos judeus feita pelo
totalitarismo nazista e testemunha do totalitarismo stalinista. A derrocada do
seu mundo e o reconhecimento da procedência da tese de Santo Agostinho de
construção de um mundo novo, ele que também fora
testemunha do desaparecimento do Império romano, e a quem Arendt
consagrou sua tese de doutorado[21],
publicada, pela primeira vez em 1929, faziam-na pensar na possibililidade de
superação das ruínas e na construção de um
novo mundo. Refugiando-se nos Estados Unidos e tendo obtido a nacionalidade
americana em 1951, ela aprofundou sua reflexão sobre os fundamentos
daquela realidade diversa.
Vale lembrar que nela perdura a noção romana de
mundo, isto é, de um espaço visível no qual se travam
relações e que se constitui num agir comum. Recorde-se que o
termo mundus para os romanos
designava um fosso, uma via de comunicação entre o mundo dos
mortos, o dos vivos e o dos deuses subterrâneos[22].
Assim, o mundo, este espaço que permite as relações,
é uma construção permanente. O advento da ruptura, pois,
não impede que o mesmo seja reconstruído. Na procura dos
fundamentos dessa reconstrução, Hannah Arendt remonta ao mundo
romano, que fornece elementos consistentes e duradouros, com a
associação entre religião, autoridade e
tradição. A sua análise detém-se, então, na
experiência norte-americana e na observação da
existência ou não daqueles três elementos.
Poderíamos acrescentar que outros elementos da
experiência romana a atrairam em sua busca de fontes de uma
reconstrução do mundo, elementos suscetíveis de
constituirem-se em obstáculo aos totalitarismos, destacando-se, de um
lado, a idéia das formas de interação de uma pluralidade
de indivíduos (e não de massa popular) num determinado
espaço político, e, de outro, as virtudes e o espírito
público do cidadão da Roma republicana[23].
A história dos Estados Unidos revela a Arendt que é
possível transpor-se a idéia de fundação para um
mundo novo. O exemplo americano dos pais fundadores foi alvo de inúmeras
evocações, entre elas, a seguinte:
(...) É também
provável que os pais fundadores, por terem escapado ao desenvolvimento
europeu da nação-estado, tenham permanecido mais próximos
do espírito romano original. Mais importante talvez foi o ato de
fundação, ou seja, a colonização do continente
americano ter precedido à Declaração da
Independência, de tal forma que a estruturação da
Constituição, recaindo nas cartas e convenções
existentes, confirmou e legalizou um organismo político já
existente mais do que o refez de novo[24].
Tal como em Roma, a fundação dos Estados Unidos
é constantemente renovada e ampliada, com a extensão do seu campo
de influência, em que avultam o predomínio econômico, a
posse das novas tecnologias e do espaço das comunicações.
As modernas formas de vida não destróem as bases da
fundação, mas as ampliam e fortalecem. Não foi por acaso
que Raymond Aron referiu-se aos Estados Unidos como
A concepção de um mundo novo que desponta no
povoamento das terras norte-americanas, como a própria nota de um
dólar consigna (Novus Ordo Seclorum), com a aceitação
geral dos recém-chegados, sem qualquer discriminação, sem
pobreza e sem opressão, não impede o reconhecimento de uma
continuidade histórica. Não obstante suas injustiças, que
devem ser corrigidas, é impossível ignorar o Velho Mundo[25].
A idéia de necessidade da ruptura advém da
constatação do fracasso da Velha Ordem européia em
corrigir as injustiças sociais e econômicas. Tal ruptura, todavia,
não é incompatível com a busca de fontes de
inspiração na história humana e, pelo que nos interessa
realçar aqui, foi precisamente na fonte romana que hauriram os pais
fundadores.
Esse vínculo, destacado por Hannah Arendt, foi
também objeto de exame por parte de outros estudiosos. Em
relação a este tema, a autora do presente texto deseja tornar
público o seu reconhecimento ao Professor José Ribas Vieira, do
Departamento de Direito da PUC-Rio e membro do Grupo que realizou esta
pesquisa, o qual, ao retornar dos Estados Unidos, após um
Simpósio sobre a Administração da Justiça,
possibilitou-lhe, generosamente, o acesso a uma obra fundamental para o seu
estudo, qual seja o trabalho do Professor Mortimer Sellers que versa sobre a
ideologia romana na Constituição americana[26].
Como sublinha este ilustre Professor da Universidade de
Baltimore, a idéia de república, tal como exposta pelos que
conceberam o modelo constitucional norte-americano, provém da
noção de res publica,
do governo pelo povo, em busca do bem comum, com base nas leis para assegurar a
liberdade. John Adams em sua defesa das Constituições dos Estados
Unidos (Defence of the Constitutions of
The United States of America), trabalho divulgado às vésperas
da Convenção Constitucional dos Estados americanos Unidos,
reportava-se a Cícero e louvava Roma como a mais sábia das
Repúblicas e como o mais nobre povo[27].
Relembra, ainda, o Professor Sellers que John Adams era tido como
o doutrinador favorito dos fundadores do primeiro partido Republicano, na
Pensilvânia, os quais propugnavam um governo com base na soberania
popular e um sistema de equilíbrio de poderes similar ao que que
presidira à distribuição de poderes entre o Senado e os Comitia da Roma Republicana.
É interessante, também, a evocação do
Professor Sellers dos pseudônimos da Roma republicana utilizados durante
os debates sobre o projeto de Constituição dos Estados Unidos,
entre eles: Publius, Brutus, Agrippa, Cassius, Cato[28],
bem como os temas e símbolos romanos na iconografia política dos
revolucionários americanos[29].
Em sua análise extremamente cuidadosa e fundamentada, o
Professor Sellers percorre os debatedores que mais se destacaram ao longo da
elaboração do texto constitucional norte-americano, salientando
os vínculos com o pensamento republicano romano, notadamente: a busca da
justiça e do bem comum pelo império da lei, um governo de
equilíbrio de poderes, compreendendo os órgãos de
soberania popular, um senado atuante e governantes eleitos.
Hannah Arendt também se refere à
inspiração romana dos conceitos de John Adams, dando mais realce
à sua invocação da associação feita pelos
romanos entre liberdade e ação: e entre liberdade e
fundação: a liberdade
romana era um legado transmitido pelos fundadores de Roma ao povo romano; sua
liberdade ligava-se ao início que seus antepassados haviam estabelecido
ao fundar a cidade, cujos negócios os descendentes tinham que gerir
(....). Os historiadores romanos sempre se sentiram presos ao início da
história romana, pois esse início continha o elemento
autêntico da liberdade romana, tornando, assim, política a sua
história; partiam, o que quer que tivessem de relatar, ab urbe condita,
da fundação da cidade, garantia da liberdade romana[30].
Da mesma forma, o modelo norte-americano revitaliza-se, sem que
se perca de vista o ideário dos fundadores, cujos princípios
são como que faróis orientando a renovação, via
Judiciário, da Constituição de
A convivência da tradição com o novo é
representada pelas relações entre o Senado e a Câmara de
Representantes. Tal como em Roma, o primeiro detém a auctoritas, o peso da opinião
imparcial de seus membros, vinculada à manutenção da
tradição. A última detém a potestas in populo, que
emana dos grupos de interesse partidário. Sublinha Arendt: Esta
distinção romana era bem conhecida dos Pais Fundadores (...). Era
este o motivo pelo qual estavam tão interessados em ter um Senado, muito
mais do que qualquer pensador europeu. Sentiam a necessidade de filtrar as
opiniões que emergem diretamente dos partidos através de um corpo
que estivesse acima da influência direta[32].
Note-se a constatação de Arendt de que a
idéia da auctoritas, poder que implica acatamento,
obediência, sem coerção, por respeito à
tradição, à isenção, desapareceu do
espaço público moderno, privando-o do elemento suscetível
de conferir-lhe estabilidade[33].
A seguinte observação de Hannah Arendt sintetiza as
suas conclusões sobre a aproximação entre a Roma
republicana e o pensamento dos revolucionários americanos: Pois se estou certa ao suspeitar que a
crise do mundo atual é basicamente de natureza política, e que o
famoso “declínio do Ocidente” consiste fundamentalmente no
declínio da trindade romana de religião, tradição e
autoridade, com o concomitante solapamento das fundações
especificamente romanas de domínio político, então as
revoluções da época moderna parecem gigantescas tentativas
de reparar essas fundações, de renovar o fio rompido da tradição
e de restaurar, mediante a fundação de novos organismos
políticos, aquilo que durante tantos séculos conferiu aos
negócios humanos certa medida de dignidade e grandeza.
Dessas tentativas, somente
uma, a Revolução Americana foi bem sucedida: os pais fundadores,
como - o que é bem peculiar - podemos ainda chamá-los, fundaram
um organismo político inteiramente novo prescindido da violência e
com o auxílio de uma Constituição. E tal organismo durou
pelo menos até o dia de hoje, a despeito do fato de em nenhum outro
local o caráter especificamente moderno do mundo atual produzir
expressões tão extremas em todas as esferas
não-políticas da vida como nos Estados Unidos[34].
Nos desdobramentos que se seguem, procuramos focalizar aspectos
que figuram nas análises de Hannah Arendt de modo mais esparso, sem que,
obviamente, fosse estabelecida uma conexão com a experiência
romana, mas que constituem precisamente a revelação da falta que
a trilogia “caráter sagrado da fundação, autoridade
e tradição” fazem ao mundo contemporâneo.
A existência de um espaço público que
induzisse comportamentos e que condicionasse formas de
comunicação já era observada
Os meios de debate via teleconferências, o
intercâmbio e a rapidez da comunicação mundial pela
Internet, as próprias consultas aos telespectadores sobre assuntos de
interesse público e que têm repercutido sobre a tomada de
decisão dos governantes, tudo evidencia o avanço, extremamente
rápido, dos meios de comunicação, sem que haja a
contrapartida da qualidade do conteúdo da comunicação
Comunicar, para além da
bateria de suas tecnologias, é reconhecer a existência de uma
obscuridade intransponível, de uma separação
irremediável e é, ao mesmo tempo, visar à
constituição de um espaço público[36].
Como vimos acima, a religião para os romanos, na
evocação de Hannah Arendt, significava literalmente re-ligare, ser ligado ao passado, donde o caráter sagrado da
fundação, que visava a projetar-se na eternidade.
Por outro lado, a vivência religiosa em si era intimamente
associada ao espaço doméstico. Os deuses lares e manes revelam a
existência de um espaço sagrado, já examinado por Fustel de
Coulanges[37].
Acentua Zeny Rosendahl, em estudo extremamente interessante sobre
esta inter-relação entre o sagrado e o espaço, que,
além dos conceitos de ponto fixo e de entorno que o espaço
sagrado implica, tais espaços
são demarcados pelo poder da mente de extrapolar muito além do
percebido. Os homens não apenas criam espaços sagrados, como
também procuram materializar seus sentimentos, imagens e pensamentos
neles[38].
Na verdade, espaço público e religião
estão sempre intimamente associados. A palavra e a ação
que se projetam num determinado espaço público estão
ancoradas na trindade romana do sagrado, da tradição e da autoridade.
A ausência de um desses elementos compromete a vivência
democrática daquele espaço. Margaret Canovan relembra que Hannah
Arendt estava convencida de que o totalitarismo não teria acontecido se
aquela trindade tivesse sido preservada[39].
Para Arendt, a continuidade, após a queda do
Império Romano, da tríade sagrado/tradição/autoridade,
se deu com a Igreja Cristã, cuja fundação repete, a seu
ver, a de Roma[40].
É interessante recordar a observação de
Arendt sobre as conseqúências da separação do poder
político (exercido pelo Rei) do poder religioso (exercido pelo Papa),
acarretando a perda de autoridade do poder político, o que a leva a
concluir que a presença simultânea dos dois poderes seria
necessária para um governo estável[41].
Tem-se aqui o sentido de religião como vínculo com a
tradição.
Vale notar que espaço público e fé
também alicerçaram a fundação dos Estados Unidos,
com o êxodo da Inglaterra dos Pais Fundadores, os Pilgrims Fathers,
revelando, da mesma forma, a integração dos elementos
política e religião, entrelaçados, mais do que nunca, na
vida dos povos do Oriente Médio[42].
Esta associação entre espaço público
e religião manifesta-se hoje na dimensão de um espaço
global.
A ampliação gradativa do espaço
público, não apenas em decorrência do aprimoramento das
técnicas de comunicação, mas do próprio alargamento
de suas fronteiras é constatação corrente em
inúmeros estudos sobre o tema. O eminente Professor Nelson Saldanha abre
o seu primoroso trabalho sobre o declínio das nações no
século XX, com a seguinte citação extraída de livro
do saudoso Professor Afonso Arinos: Salazar
e De Gaulle são as duas poderosas expressões finais dos Estados
nacionais, à maneira do
Século XIX, ao passo que Churchill foi a primeira expressão dos
Estados Unidos da Europa[43].
Este alargamento do espaço público pode ser
observado na passagem dos Estados Nacionais para um outro patamar, Estados
Multinacionais, sobretudo com a reunião, em torno das
superpotências, de agrupamento de várias nacionalidades, sem que a
própria superpotência constitua uma nação na
concepção espiritual e cultural do século passado. Como
bem acentua o Professor Nelson Saldanha, ao invés dos componentes culturais
que sedimentam as nações, passam para primeiro plano os elementos
econômicos e técnicos que esvaziam o sentimento nacional: E quando o elemento cultural (...) cede vez
aos componentes econômicos e técnicos na
caracterização da vida histórica (...), os traços
nacionais perdem lugar para a uniformização e a
padronização. O mundo se acha entregue a grandes
escritórios internacionais, desligados do “sentimento
nacional”[44].
Se, por um lado, a aproximação de culturas
distintas, de espaços públicos de origem diversa, constituem
fenômenos fascinantes para os que analisam o mundo contemporâneo,
por outro, na medida em que se intensificam os intercâmbios de ordem
vária, com o perpassar de correntes globalizantes, percebe-se uma
reação natural e contrária de afirmação ou
de busca de identidades, basicamente nas raízes religiosas[45],
que pode suscitar confrontos totais. Sob esta ótica, de
menção obrigatória é a obra de Samuel Huntington, O choque das civilizações[46].
Sob o prisma que nos interessa no presente texto, vale observar
que a caracterização inequívoca de um espaço
público europeu vincula-se à preservação de um
legado greco-romano e judaico, face a outras identidades mais proemientes,
notadamente a islâmica[47].
Não obstante a intensificação das
iniciativas globalizantes, visando a associar a integração
cultural àquelas de ordem econômica e tecnológica[48],
o que se observa é a crescente defesa do multiculturalismo, visto que,
como observa Huntington, um
império global é impossível[49].
Parece-nos clara a validade, ainda nos dias de hoje, dos elementos
romanos ressaltados por Hannah Arendt na caracterização do
espaço público. Basta a ausência de um deles (o
caráter sagrado da fundação, a tradição e a
autoridade) para tornar este espaço efêmero e vulnerável.
As observações de Hannah Arendt aqui ressaltadas
concorrem para o reconhecimento da necessária presença
simultânea desses três elementos, suscetíveis de superarem a
instabilidade e a incerteza que marcam os tempos atuais. Num cotejo entre as
civilizações ocidental e oriental percebe-se, sem dificuldade que
a primeira relegou a valorização do passado e da
tradição a um segundo plano, sem buscar expandir as bases que a
geraram, isto é, sem aumentar a fundação, ao passo que
última preserva as suas origens culturais e as suas religiões,
não obstante as correntes materialistas que, até recentemente,
predominaram em muitas das culturas que a integram.
[15] Cf. O espaço
público e as relações entre os poderes instituídos
e os da sociedade civil, in Direito,
Estado e Sociedade, n° 7, 1995, Departamento de Direito da PUC-Rio, 2.
[16] Seyla Benhabib, Models
of Public Space, in: Habermas and the
Public Sphere. Ed. by Craig Calhoun,
The MIT Press, Cambridge,1992, 76.
[19] Apresentamos o estudo “A
Urbs e a noção de espaço público” no
Seminário sobre Direito Público Romano e Política,
realizado, conjuntamente, pelo Departamento de Direito da PUC-Rio e
Fundação Casa de Rui Barbosa, em agosto de 1996. Os trabalhos
resultantes desse encontro figuram na publicação Direito Público Romano e
Política, Rio de Janeiro, Editora Renovar, 2005.
[20] V. Hannah Arendt, De la historia a la acción
(Introducción de Manuel Cruz). Ediciones Paidós, Barcelona,
1995.
[22] Norbert Rouland, Rome, démocratie impossible?.
Babel, 1994, 22, apud Jean-Claude
Eslin, op. cit., 17, nota 1.
[23] V. Margaret
Canovan, Hannah Arendt: a
reinterpretation of her political science. Cambridge
University Press, 1992, notadamente o capítulo sobre o novo
republicanismo, em que sublinha a noção fundamental na obra de
Hannah Arendt da pluralidade dos seres humanos e da existência de um
espaço público no qual eles interagem (201-252).
[26] V. M.N.S.
Sellers, American Republicanism:
Roman ideology in the
[31] Em sua análise da obra de Arendt, Anne Amiel ressalta que
o espírito romano, que vincula
fundação, ampliação e conservação,
está preservado na função legal e de
interpretação da Suprema Corte, e, trazendo à
colação a própria Hannah Arendt, transcreve de sua obra On Revolution: a autoridade da Constituição americana reside na sua
capacidade inerente de ser emendada e
aumentada (Cf. Amiel, op. cit.,
102).
[33] V. Sylvie Courtine-Denamy,
Hannah Arendt. Hachette (Pluriel),
1997, 261, e João Maurício Leitão Adeodato,
O problema da legitimidade: no rastro do
pensamento de Hannah Arendt. Forense Universitária, Rio, 1989, 177.
[35] Hannah Arendt, Les origines du totalitarisme: l’impérialisme. Paris,
1982, apud AndrÉ Akoun, La
communication démocratique et son destin. PUF, 1994, 149
(Tradução aproximada).
[37] V. Numa Denis Fustel de
Coulanges, A Cidade Antiga, V,
também, o trabalho de Zeny
Rosendahl, Espaço e
Religião: uma abordagem geográfica. Rio de Janeiro, UERJ,
1996.
[39] V. Margaret Canovan,
op. cit., 69; V., também, sua referência, na nota 23, aos
trabalhos de Arendt What is authority?
e Tradition and the Modern Age.
[40] V. Hannah Arendt, Entre o Passado e o Futuro, op.
cit., 167-169 e a análise de Margaret Canovan sobre este ponto (op.
cit., 219, 220).
[43] Afonso Arinos, Planalto (Memórias). Rio de Janeiro, 1988, 149, apud Nelson
Saldanha, O Declínio das Nações e outros ensaios.
Recife, FUNDAJ, Ed. Massangana, 1990, 17.
[45] V. Gilles Kepel,
[46] V. Samuel Huntington, O choque das civilizações e a recomposição
da ordem mundial. Ed. Objetiva,
1997.