UTILIDADE DO DIREITO ROMANO
NA CARACTERIZAÇÃO DOS CONTRATOS ATÍPICOS, ESPECIALMENTE O
DE UTILIZAÇÃO DE UNIDADE EM “SHOPPING CENTERS”[*]
Universidade de São Paulo -
USP
SUMÁRIO: I. Breves considerações sobre a
evolução dos contratos. – II. Conceito de contrato atípico. – III. Classificação dos contratos
atípicos. – IV. Natureza jurídica do contrato de
utilização de unidade em centros comerciais, ao enfoque da doutrina
pátria. – V. Minha posição doutrinária.
– VI. Explicação sobre o nome do contrato em
causa e necessidade de sua regulamentação. –
VII. Conclusões. – VIII. Minha tese acolhida no superior Tribunal de Justiça.
– IX. O novo Código Civil brasileiro de 2002 e os
contratos atípicos.
1. Ao
lado das obrigações de natureza contratual, do “ius
civile” (“nexum”, empréstimo de dinheiro, e
“sponsio”, que criava entre as partes um vínculo de natureza
religiosa), surgiu o sistema de contratos do “ius gentium”,
desapegado de formalismos e com base nas relações, que se
estabeleceram entre os cidadãos romanos e os estrangeiros.
2. Por
esse sistema, os contratos classificavam-se em “re, verbis, litteris et consensu”, sendo certo que o
primeiro se aperfeiçoava, pela entrega, pela tradição
(“traditio”), da coisa (“res”); o segundo, verbalmente
(pelo pronunciamento de palavras); o terceiro, por escrito; e o último,
pelo consentimento dos interessados.
3. Essa
classificação, que é do Direito Romano Clássico (de
fins da República, século II a.C., até fins do Principado,
século III d.C.) atribui-se a Gaio (Institutas, Com. 3, par.89), do
século II d.C., falecido após 178 d.C.).
4. Por
sua vez, os contratos “verbis” e litteris”, ambos solenes,
com “causa civilis” (com formalidades), coadunavam-se com a noção
de contrato do primitivo Direito Quiritário. Assim, essas
obrigações contraídas por palavras solenes e por escritos
(“obligationes verbis et litteris contractae”) acolhiam-se no
“ius civile”, sendo utilizadas pelos cidadãos romanos
(“cives”).
5. Com o
passar do tempo, tornaram-se insuficientes esses modelos contratuais, surgindo,
então, em suprimento desse sistema, os contratos inominados, que
alargaram as possibilidades de contratação, por meio das
fórmulas de Paulo (Digesto,
Liv. 19, tít.5, lei 5, pr.): “do
ut des” (dou para que dês), “do ut facias” (dou para que faças), “facio ut des” (faço para
que dês) e “facio ut facias”
(faço para que faças).
Esses contratos eram protegidos por ação de caráter
geral (“actio praescriptis verbis”),
ao passo que os nominados por ações especiais.
6. O
Direito Romano custou a sair das fórmulas contratuais rígidas dos
Quirites, para ir, pouco a pouco, granjeando o ar puro da liberdade, que
purificou suas instituições contratuais.
7. O
problema dos contratos nominados e inominados cresceu de tal forma que, por
vezes, coloca o estudioso do Direito ante a posição de saber se
uma figura contratual é ou não típica ou se a mesma se
constitui em um “tertium genus”.
8. Por
outro lado, se o problema dos romanos foi o de forçar o aparecimento das
formas de contratos atípicos, o nosso é de não
deixá-las ao livre arbítrio das partes, ante o perigo de uma
liberdade não condicionada.
10. Os
romanos conheceram os contratos nominados e os inominados, ou seja, os que
possuíam e os que não possuíam um nome específico.
Então, os contratos nominados tinham um tratamento legislativo
próprio; hoje, entretanto, tal nem sempre acontece, sendo, portanto,
obsoletas essas expressões.
Assim, a
aplicar-se, presentemente, essa terminologia, deverá ela ser entendida
com a devida ressalva da doutrina, pois, muitas vezes, o contrato tem nome, no
ambiente de sua utilização, e não é nominado, dado
que não se encontra, devidamente, regulamentado em lei.
11.
Daí, ser preferível a referência aos contratos
típicos e atípicos, sendo certo que os primeiros ajustam-se, os
segundos não, em qualquer dos tipos, dos moldes, dos modelos contratuais
estabelecidos em lei.
12. Por
isso mesmo que tipicidade significa presença, e atipicidade
ausência, de tratamento legislativo específico.
13.
Ressalte-se, nesse passo, que a palavra típico advém do termo
latino “typus, i”, que
significa tipo, modelo, molde, original, retrato, forma, exemplar, imagem,
classe, símbolo, cunho, representação, que serve de tipo,
de característico, sendo certo que “typus” vem do grego “typos” (o que foi forjado, batido), do verbo grego “typto” (bato, forjo).
14. O
artigo 1.322 do Código Civil italiano, de 1942, segundo
parágrafo, ao seu turno, aponta, de modo indireto, como atípicos
todos os contratos que, ainda, não pertencem aos tipos, que possuem uma
disciplina particular, desde que realizem interesses merecedores de
proteção pelo ordenamento jurídico.
15. Para
a exata conceituação dessas categorias, devemos referir os
ensinamentos de Francesco Messineo (Dottrina Generale del Contratto, Ed.
Giuffrè, Milano, 3ª ed., 1948, p. 214), baseados no texto da
legislação civil italiana, segundo os quais «o contrato
é, in concreto, nominado,
quando se enquadra exatamente nas estatuições (cogentes ou
imperativas), que disciplinam o correspondente tipo», sendo certo que,
«Em verdade, tomada literalmente, a expressão contrato inominado
equivale a contrato que não tem um nome no sistema legal; mas, definitivamente, o não ter um
nome depende, ao seu turno, do fato de que o referido contrato não
está sujeito a disciplina própria; e é este último
o exato conceito de contrato inominado».
17.
Sobre tipicidade, assim se manifesta Pontes
de Miranda (Tratado de Direito
Privado, Ed. Borsoi, Rio de Janeiro, 1962, vol. 38, par. 4.257, p. 366):
«A tipicidade tem causas históricas, por muito fundada no direito
romano, porém não só a vida jurídica nos tempos
posteriores e nos dias de hoje atuou e atua, como também o trato dos
negócios, em caracterizações inevitáveis. O tráfico jurídico
não só tipiciza ou corrige o tipo. Por vezes, suscita tipos novos (e.g., no
direito brasileiro, a duplicata mercantil), ou negócios jurídico
atípicos. A vida muda.
Embora os princípios permaneçam, mudam-se estruturas e
conteúdos de negócios jurídicos».
Assim,
quando falamos em contrato típico, ministra Angelo Piraino Leto (I
Contratti atipici e innominati, Ed. Utet, Torino, 1974, pp. 67 e 68), com
palavras de Sacco, queremos dizer: «contrato que se insere em uma figura
que tem uma disciplina legal particular». Por outro lado, é
contrato atípico aquele que não possui uma disciplina
legislativa, possuindo «uma causa nova e diversa, relativamente ao
disciplinado pela lei».
18. Os
contratos nominados ou típicos recebem do ordenamento jurídico
uma regulamentação particular, apresentando-se com um nome, ao
passo que os inominados ou atípicos, embora possam ter um nome, carecem
de disciplina particular, estando sujeitos, atualmente, às normas gerais
dos contratos, desde que não contrariem a lei, os bons costumes e os princípios
gerais de direito.
19. Como
bem sintetizou Silvio Rodrigues (Direito Civil, Dos Contratos e Das
Declarações Unilaterais da Vontade, Ed. Saraiva, São
Paulo, 1972, 4ª ed. vol. III, p. 35, nº 16), «Contratos nominados ou
típicos são aqueles a que a lei dá
denominação própria e submete a regras que
pormenoriza», prosseguindo a conceituar os contratos inominados ou
atípicos como os que «a lei não disciplina expressamente,
mas que são permitidos, se lícitos, em virtude do
princípio da autonomia privada. Surgem na vida cotidiana, impostos pela
necessidade do comércio jurídico».
20.
É por demais complexo o problema da classificação dos
contratos inominados ou atípicos, e deve ser ele compreendido com certa
tolerância, uma vez que juristas de nomeada internacional têm
trabalhado de forma exaustiva para sua solução, muitas vezes sem
resultado prático, mas com contribuição teórica
merecedora de aplausos, pois
colocam eles, em plano internacional, um problema para ser solucionado e
cogitado por outros ângulos de vista, abrindo o campo dos debates livres
e construtivos, que é a meta propulsora da Ciência
Jurídica.
21.
Colaborando nessa área, Francesco
Messineo (Dottrina cit., p. 226)
apresenta classificação dos contratos sob exame, adiante
resumida.
Contratos
inominados em sentido estrito ou puros: a) com conteúdo, completamente,
estranho aos tipos legais (ex. contrato de garantia); b) com, somente, alguns
elementos estranhos aos legais, enquanto outros, com função
prevalente, são legais (ex. contrato de bolsa simples).
Contratos
inominados mistos: c) com elementos todos conhecidos (elementos legais),
dispostos em combinações distintas (tomadas mais de uma das
figuras contratuais nominadas), elementos que podem estar entre si em
relações de coordenação ou
subordinação. Esta categoria é a mais numerosa sendo
integrada por contratos unitários.
A causa do contrato misto é, igualmente, mista, que advém
de uma ou mais causas heterogêneas entre si.
22. Por
outro lado, o mesmo Francesco Messineo
(Contratto innominato (atípico),
Enciclopedia del Diritto, Ed. Giuffrè, Milano, 1962, vol. X, pp. 102 e
103) expõe o agrupamento sistemático dos contratos inominados, da
lavra de Ludwig Enneccerus, com um
pequeno acréscimo de idéias por Heinrich Lehmann, sendo essa sistematização, no seu
entender, a que mais se impõe pelo rigor, pela organicidade e pelo fato
de ter a mesma recebido maiores adesões, sendo certo que a procurarei
sintetizar, na medida do possível, como adiante.
CONTRATOS INOMINADOS, (mistos, em sentido
amplo: a) Contratos combinados, ou contratos gêmeos. Um dos
contratantes obriga-se a várias prestações principais, que
correspondem a diversos tipos de contrato, enquanto o outro contratante promete
uma contraprestação unitária (ex. comida e alojamento por
uma contraprestação única; transporte marítimo de
pessoa, com alimentação). Compõem-se de dois tipos
contratuais mesclados em um todo unitário. (As partes contratuais são
inseparáveis); b) Contratos de
tipo dúplice, ou contratos
híbridos. Todo o
conteúdo do contrato se enquadra em dois tipos contratuais diversos, de
tal modo que se manifesta como contrato quer de uma quer de outra
espécie (ex. contrato de portaria, onde existem, tanto elementos da locação
– uso de local a título oneroso – quanto, também, elementos de contrato de
trabalho – prestação de serviços a título
oneroso); c) Contratos mistos, em sentido
estrito. O contrato
contém elementos, que se mostram, cada um derivando de forma
autônoma de outro tipo contratual nominado, sendo, pois, elementos legais
e conhecidos, dispostos em combinações originais de
coordenação ou subordinação. Assim, existe a fusão de causa de
dois ou mais contratos nominados, ou de
elementos de contratos nominados com atípicos, ou de, somente,
elementos atípicos, sendo certo que existem em todos eles, uma causa
mista, que deve ser, sempre, unitária (ex. a doação pode
conter uma venda – ‘negotium
mixtum cum donatione’, - ou seja, pode concluir-se, vendendo-se a coisa
abaixo de seu valor; um negócio pode implicar uma compra e venda –
renúncia de um crédito litigioso para a aquisição
de uma coisa; um contrato de
trabalho pode conter uma sociedade; o transporte de pessoa em
vagão-leito implica não só transporte, mas também
locação de coisa).
23. No
Brasil, é de destacar-se a classificação de Orlando Gomes (Contratos, Ed. Forense, Rio de Janeiro, 1998, 18ª ed., atual.
e notas de Humberto Theodoro Júnior, pp.
Entendo,
todavia, “data maxima venia”, que os contratos que se formam de elementos
de vários contratos típicos não são típicos,
mas atípicos mistos, como adiante demonstrarei.
24. De
ver-se, ainda, que Orlando Gomes
(o.c., pp. 105 e 106), em seqüência, enquadra em três classes
os contratos mistos: 1) contratos gêmeos; 2) contratos dúplices;
3) contratos mistos “stricto sensu”,
escudando-se nas lições de Enneccerus.
«Nos
contratos gêmeos; e nos contratos dúplices»; continua o
saudoso Professor baiano, «há pluralidade de
prestações típicas de vários contratos que se
misturam. Nos contratos gêmeos, a diversas prestações de
uma das partes corresponde contraprestação única, enquanto
nos contratos dúplices, a diversas prestações correspondem
várias contraprestações. Aqueles são mais simples,
estes mais complexos. O contrato
misto, “stricto senso”,
segundo Enneccerus, contém elemento que representa contrato de outro
tipo. Trata-se de contrato simulado, não o considerando contrato misto,
alguns escritores. Entre os contratos mistos, não devem ser
incluídos os que Enneccerus denomina contratos de duplo tipo, e
contratos típicos com prestações subordinadas de outra
espécie. Nos primeiros
unem-se dois contratos completos, de modo que se apresentam como contratos
tanto de uma espécie como de outra. Visto que o contrato misto resulta
da combinação de prestações ou elementos simples de
outros contratos, não pode ter essa natureza aquele que é formado
pela justaposição de dois contratos completos. Tanto não
são contratos mistos, que se lhes aplicam de modo imediato, e não
por analogia, as regras de um e outro, como reconhece o próprio
Enneccerus. Nos contratos típicos com prestações
subordinadas de outra espécie, o contrato básico não se
altera em sua natureza pela circunstância de se lhe agregar uma
prestação de outro tipo contratual subordinada a seu fim
principal. Desde que essa prestação não influi nesse
sentido, o contrato não é misto, na acepção
técnica da expressão».
De minha
parte, continuo entendendo que o somatório, em um, de dois ou mais
contratos completos, em que circunstâncias sejam, não possibilita
a consideração de cada avença, isoladamente, como
típica; isto, porque as prestações desses contratos
mesclam-se em um todo, sem possibilidade de separação. Todas as
obrigações assumidas formam um só contrato, misto,
ensejando sua rescisão, por exemplo, o descumprimento culposo de
qualquer delas.
25. Sem
qualquer pretensão de inovar ou de criar polêmicas, já em
1965, apresentei tese sobre a matéria, na Faculdade de Direito da USP (Contratos Inominados ou Atípicos,
Ed. Cejup, Belém, 1988, 3a ed., especialmente pp.
26.
Assim, classifiquei os contratos atípicos, (em sentido amplo) em: 1)
contratos atípicos, propriamente ditos (em sentido estrito); 2)
contratos mistos: a) com elementos, somente, típicos; b) com elementos,
somente, atípicos; e c) com elementos típicos e atípicos.
27. Como
resta evidenciado nessa classificação, embora abreviadamente, os
contratos atípicos, em sentido amplo, não são mistos, pois
eles contêm os contratos atípicos, propriamente ditos, que
são formas singulares atípicas, como são formas singulares
típicas as dos contratos nominados ou típicos, sendo contratos
mistos, tão somente, os que mesclarem formas típicas ou
atípicas, mutuamente, ou umas e outras.
28. Os
contratos atípicos mistos formam uma unidade indivisível, um todo
uno e complexo.
29.
Existe o contrato atípico em sentido estrito, como o típico, caso
contrário, o contrato, que de atípico simples se transplantasse
ao direito positivo como típico, perderia suas características
próprias.
30. Com
a instalação, no Brasil, dos “Shopping Centers” e
ante a complexidade jurídica das situações por eles
criadas, várias manifestações de eminentes juristas vieram
a enriquecer o tema, com pareceres, artigos e simpósios.
31.
Entre os assuntos ventilados e debatidos, encontra-se o relativo à
natureza jurídica do chamado contrato de locação nesses
centros comerciais.
32. Analisando
essas doutas manifestações por obra especializada (“Shopping Centers” –
Aspectos Jurídicos, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo,
1984), composta por ocasião do Simpósio sobre os Centros
Comerciais, promovido pela Escola Superior de Magistratura Nacional –
ESMAN, com a colaboração da Associação Brasileira
de “Shopping Centers” – ABRASCE, no Rio de Janeiro, em
novembro de 1983, bem como outros trabalhos publicados e os pareceres e
artigos, em meu poder, a serem
publicados, conclui-se pela existência de correntes de pensamento,
a explicarem a aludida natureza jurídica.
A
princípio, a grande maioria dos doutrinadores pátrios considerou
esse contrato como de simples locação (Teoria da
locação); outros seguiram a Teoria da locação com
atipicidade; outros defenderam a Teoria da atipicidade mista; entre muitas
teorias.
33.
Aproveitando tudo quanto exposto, discordando das inúmeras doutrinas que
procuram estabelecer a natureza jurídica do contrato das lojas em
“Shopping Centers”, e com fundamento na classificação dos
contratos atípicos mistos, que ofereci em 1965 (conforme item 25,
“retro”), sempre entendi o contrato sob estudo como atípico
misto, formado com elementos
típico (contrato de locação) e com outros elementos
atípicos. Essa nova figura
atípica não é uma mera locação com
atipicidade, pois não se aplica a ela a lei de locação,
que fica desnaturada.
34.
Acontece, que, como deixei claro, o elemento típico quando somado com
outro elemento típico ou, mesmo, atípico desnatura-se, compondo
esse conjunto de elementos um novo contrato, uno e complexo, com todas as suas
obrigações, formando algo individual e indivisível.
35.
«Para delimitar com segurança a atipicidade de um contrato, o
verdadeiro critério é o que prescreve o estudo de sua causa, ou
função econômica-social», diz Orlando Gomes (Traços
do Perfil Jurídico de um “Shopping Center”, in “Shopping Centers”, cit.,
pp.
Adverte,
mais: «A relação atípica há de ser
monolítica, proveniente de causa única, jamais de uma pluralidade
de causas entre si autônomas, nada obstando à sua
determinação, que é feita ora pelas próprias
partes, ora pelos usos. Exige-se,
tão-somente, que seja um ‘elemento objetivo e constante’,
como nos contratos típicos, reconhecido, nos limites de sua validade,
pelo ordenamento jurídico (Messineo). Há de coincidir,
finalmente, com o chamado ‘intento
empírico ou escopo prático que as partes pretendem alcançar,
ou, em linguagem vulgar, o que querem obter em termos de
realização de interesses econômicos».
36. Sem
discordar desses tão sábios ensinamentos, o certo é que,
na prática, muitas interpretações surgem quanto à
aludida tipicidade social, criada pelas próprias partes ou pelos usos e
costumes. Também, resta difícil, diante das figuras contratuais
novas, em formação, sentir-se, nelas, a chamada “causa
única”.
37. Por
isso prefiro o método de análise das prestações,
que compõem os contratos (dar, fazer e não fazer), para melhor
entender sua natureza, já que, como demonstrado, as
obrigações integram a essência das
convenções. Trata-se
de um posicionamento objetivo, sem cogitações sobre a causa
negocial.
38.
Aliás, esse tem sido meu proceder científico, que se mostra, com
bons resultados práticos em alguns de meus estudos e pareceres.
39.
Destaque-se, nessa feita, parecer por mim exarado (Contrato Atípico, no
meu livro Direito Privado, Casos e
Pareceres, Ed. Cejup, Belém, vol. 1, 1986, pp.
A
discussão doutrinária foi em torno de considerar esse contrato
como típico de compra e venda ou como típico de
locação de coisa.
Analisemos
suas prestações principais, narrando de modo sucinto, os fatos.
O
titular de direitos de exploração de água mineral, que
chamaremos de A, firmou a aludida
contratação com empresa distribuidora desse produto, que
chamaremos de B, obrigando-se,
reciprocamente, a várias prestações: A, titular da fonte de água mineral, obrigou-se a extrair
essa água, colocando-a no vasilhame de B, fornecido por B,
entregando A o produto, desse modo, a B, contra o pagamento, por este
à aquele, de um preço.
Acontece que, ainda, o vasilhame de B
deveria portar a marca de A, por
rótulo, ficando B impedido de
comercializar dita água, na região da cidade de Pinhal-SP, e A impedido do mesmo comércio
fora dessa região; além de outras prestações
secundárias.
Realmente,
as principais obrigações assumidas pelo fornecedor foram as de
captação, industrialização e engarrafamento, de
água mineral, que são de fazer, e a de entregar, esse produto,
que é obrigação de dar coisa certa. Em contrapartida, seu direito
fundamental é o de receber, por essa atuação um pagamento
certo, gravado na avença, e reajustado, monetariamente, segundo o
contratado.
Por seu
turno, obrigou-se, principalmente, a distribuidora a entregar o vasilhame entre
outras coisas, para possibilitar o engarrafamento do mencionado produto, a
pagar os valores reajustados, como estabelecido no contrato, que são
obrigações de dar coisa certa, e a distribuir esse produto,
vendendo-o a terceiro, o que importa obrigação de fazer, enquanto
não realizada esta venda.
Por outro lado, os direitos da distribuidora são: o de retirar a
água engarrafada, no setor industrial da fazenda do fornecedor, o que,
também é uma obrigação de fazer, o de poder
fiscalizar a industrialização da água e o de poder utilizar-se
da marca do fornecedor.
A
relação jurídica principal, que se insere nesse complexo
de direitos e obrigações é a de compra e venda de
água mineral, implicando a entrega, pelo fornecedor, desse produto em
sua fonte e a remuneração pela distribuidora, pagando o devido
preço. Ambas
obrigações de dar coisa certa: entrega de água mineral
(espécie) com a quantidade, mensal prevista no contrato, com
mínimo e máximo de fornecimento, presente a qualidade, do
produto, inconfundível (água mineral das fontes do fornecedor,
oriunda da Fazenda F, com
características medicinais próprias). O caráter de infungibilidade
desse produto resulta em corolário, pois jamais poderia o fornecedor
substituí-lo por outro, levando-se em conta suas peculiaridades.
Ora,
como resta evidente, dito contrato não é nem compra e venda, nem
de locação de coisa, pois, nestes, as prestações
são, simplesmente de dar, respectivamente: coisa contra preço e cessão de uso e de gozo contra
aluguel. A existência de
qualquer outra espécie de prestação, de fazer ou de
não fazer, como demonstrado, desnatura toda a contratação.
Pela
classificação de Paulo conforme Digesto já citado, no
Direito Romano, examinada ao início deste trabalho, o contrato de compra
e venda e o de locação implicam prestação de dar
contra dar (“do ut des”).
Logo, a
presença de uma prestação de fazer ou de não fazer,
no contrato, desnatura a compra e venda ou a locação, ainda que
exista contrato atípico misto, com figura típica (compra e venda
ou locação).
Não podem ser aplicadas isoladamente as regras desses contratos
típicos.
Realmente,
no meu comentado Parecer, mesmo que vendida a água, em ditos vasilhames,
com recebimento do preço, não estaria exaurida a compra e venda,
bastando o descumprimento de uma das atrás mencionadas
prestações para a rescisão de todo o contrato, como por
exemplo, se B vendesse sua
água na região de Pinhal, ou vice versa (descumprimento de
obrigação de fazer e de não fazer).
Por
outro lado, nunca existiu locação, na referida avença,
porque faltou-lhe o elemento fundamental, cessão do uso da fonte, que
permaneceu na posse de A. Todavia,
ainda que B pagasse a A para utilizar-se de sua fonte, mesmo
assim descumpriria todo o contrato se se
obrigasse a não comercializar dita água, na região
Pinhal, e o fizesse.
40. Em
outro parecer meu (Contratação Atípica Mista.
Indivisibilidade. Condição Resolutiva Tácita, no meu livro
Direito Privado, cit., 1989, vol. 3, pp.
No caso,
a empresa A vendeu à empresa B duas áreas de terra, sendo
certo que, à época de lavrarem-se as escrituras definitivas,
firmaram essas partes um contrato particular de execução de obra,
pelo qual a compradora das áreas obrigou-se a realizar trabalho de
infra-estrutura de loteamento, gratuitamente, no terreno, restante, da aludida
vendedora.
Afora
outras situações secundárias, o certo é que restou
evidenciado que as partes quiseram os dois negócios, simultaneamente,
que, embora típicos, compra e venda e empreitada, restam
indivisíveis na aludida relação jurídica (os
negócios nasceram juntos, por uma única causa).
Por
isso, mesmo que cumpridas as prestações do negócio de
compra e venda, ele não se extingue, pois fica dependente do cumprimento
das prestações contratadas na empreitada, sob pena de
rescisão do negócio todo.
Assim,
são indivisíveis todas as avenças dessas mesmas partes,
tais as prestações de dar, de ambas, na compra e venda de
áreas de terra; tais as prestações, de dar e de fazer, na
empreitada, assumidas pela empresa B,
independentemente de qualquer remuneração. Os negócios formam uma unidade
obrigacional só, que não pode ser dividida. As partes, ao
contratarem, quiseram o todo das duas contratações.
41. Em
outro parecer (Natureza atípica da franquia comercial – “franchising” – e “royalties” pagos, de 22 de maio de
1988, ainda não publicado), sustentei que o contrato de uma confeitaria,
para revenda de doces, bolos, salgados, sorvetes e demais produtos seus,
firmado com seus revendedores, é de franquia comercial; logo,
atípico misto, à época do parecer (atualmente, o contrato de “franchising” está regulamentado pela Lei 8.955, de 15
de dezembro de 1994), dadas as cláusulas pactuadas, adiante resumidas.
Por esse
contrato, dita confeitaria concede direito a suas revendedoras de revender os
aludidos produtos, de sua fabricação, devendo estas realizar seus
negócios, em seu nome, por sua conta, risco e inteira responsabilidade,
sem direito de representação da confeitaria.
A
confeitaria obriga-se: a prestar às mesmas revendedoras
orientação técnica, relativamente à
organização e adequado funcionamento dessas empresas; a ceder; por
seus departamentos especializados, o “know how” necessário
à instalação e montagem das lojas revendedoras, fornecendo
plantas, para a execução de suas obras; a orientar sobre a forma de
utilização, com o máximo de eficiência, de todas
as instalações e
montagens das lojas de revenda; a orientar o pessoal técnico das mesmas
revendedoras; a visitar, periodicamente, a estas, por meio de seus representantes e auditores, para
verificar o aprimoramento das
atividades destas.
Por
outro lado, as revendedoras obrigam-se: a adquirir os produtos fabricados pela
confeitaria, por pedidos diários, aos preços estipulados pela
produtora, com uma margem de lucro; a remunerar a confeitaria com um percentual sobre o
volume de vendas; a promover os
interesses da confeitaria, pela propaganda de seus produtos; a usar o
nome da confeitaria, enquanto durar o contrato, sem, entretanto, adquirir
qualquer direito quanto a essa marca; a equipar suas dependências,
destinadas à revenda, exposição e depósito dos
produtos, e a conservá-los nos moldes das orientações da
confeitaria, identificando-os com a marca desta; a observar a orientação da confeitaria,
quanto às normas de trabalho, manutenção de estoques e vendas desses produtos, bem
como no tocante à assistência técnica, propaganda
promoção de vendas e treinamento do pessoal; a manter o
atendimento ao público, em todas as suas instalações; a
manter a tabela de preços em lugar visível; a manter os produtos
sem modificá-los; a zelar pelas marcas, insígnias, sinais,
expressões de propaganda ou privilégios industriais da
confeitaria; a não fabricar, comercializar e/ou colocar à venda
produtos de qualquer natureza, cujas origens não sejam da confeitaria
inclusive material de embalagens.
Esse
contrato, além de obrigar a revendedora, de modo exclusivo, como visto,
quanto à comercialização dos produtos da confeitaria, fixa
a zona dessa atividade da revendedora, que não poderá
exercê-la fora dela, competindo à confeitaria realizar contratos
de idêntica natureza com outras revendedoras.
Cabe,
nesse ponto, para perfeito entendimento desse contrato de “franchising”, diferenciando-o do
ora estudado, a mostragem de seus elementos essenciais, cuidados por Ítalo Giorgio Minguzzi (Lezioni sui contratti commerciali, Ed.
Maggioli, Rimini, 1981, pp. 167 e 168), a saber: 1) «existência de
um contrato que regule em detalhe todos os aspectos do acordo de
colaboração entre a empresa e o operador comercial»; 2)
«autorização do operador, por parte da empresa, ao uso
da marca e/ou da
denominação ou razão social desta última»; 3)
«transferência ao operador do conhecimento técnico de
propriedade da empresa e do ‘know
how’ comercial idealizado e experimentado pela mesma»; 4)
«pagamento à empresa de uma cota da parte do varejista ou do
investidor: tal cota representa um correspectivo pelo uso do nome, da marca e
da imagem e pelo acesso imediato, oferecido a cada indivíduo ao ‘know how’ comercial, à
assistência, à instrução, à técnica e
a todos aqueles serviços que são de propriedade da
empresa»; 5) «necessidade de um investimento inicial por parte do
operador, para cobertura das despesas de construção, transformação e
equipamento do exercício da distribuição»; 6)
«interesse contínuo da empresa ao fornecer ao operador toda ajuda
possível em todos os campos da gestão comercial: ‘layout do ponto de venda,
aquisição, rotação do ‘stock’, ‘display’,
promoção, ‘merchandising’,
publicidade, contabilidade, consulência fiscal, instrução
do pessoal, atualização periódica etc.»; 7)
«adestramento fornecido pelos técnicos da empresa ao operador logo
ao início da atividade do ponto de venda»; 8) «processo e
disponibilidade por parte do operador, da unidade de venda e dos requisitos
jurídicos pelo exercício do
comércio».
Como
visto, o mesclado de prestações de dar, de fazer e de não
fazer, leva a uma concreta impossibilidade de enquadrar a franquia comercial em
qualquer dos tipos regulamentados.
Veja-se, mais, que essa diversidade de prestação em sua
grande maioria repele a idéia de considerar o contrato em foco como se
franquia fosse.
Destaque-se,
só para lembrar de algo fundamental, que, na franquia, não existe
cessão de uso de local, pois este é do próprio franqueado;
e que embora o utilizador seja obrigado a promover o nome do centro comercial
em que se instala, o franqueado zela pelo nome dos produtos do franqueador, que
revende ou produz, mas sob total controle deste último.
As
diferenças aumentam à análise, sempre, das
prestações constantes de uma e de outra
contratações.
42.
Resta clarividenciado, pois, que é muito útil, para descobrir a
tipicidade ou atipicidade do contrato, a análise profunda de suas
prestações (dar, fazer e não fazer). É certo que podem coexistir essas
espécies, todavia os objetos prestacionais são diferentes, o que
leva à descoberta da verdadeira causa contratual.
43. No
contrato de utilização de unidade
44.
Assim, relembrando as prestações peculiares do contrato sob
exame, já desfiladas pelos vários juristas que cuidaram da
matéria, pondere-se que a contratação tem como cerne a
cessão do uso ou do uso e gozo de um determinado espaço em um
“Shopping Center”, mediante particularíssima retribuição,
pelos analisados aluguéis, fixo e variável, por filosofia dos
quais o utilizador recebe benefícios daquele e concede vantagens
àquele, em razão do dúplice fundo de empresa existente.
O
contrato em causa demonstra a preocupação das partes de levarem a
cabo um investimento de ambas, com participações
recíprocas, em ambiente de alto nível, que deve ser mantido, com
todos os sacrifícios.
45.
Relembremos, pois, de que o contrato em estudo apresenta peculiaríssimas
obrigações: 1) o utilizador tem de informar o empregador sobre
seu faturamento, por planilhas, para que se possa elaborar o cálculo do
aluguel percentual ou variável (prestação de fazer); 2) o
empreendedor, na falta dessa informação ou não se
contentando com ela, pode fiscalizar esse faturamento, até na
“boca do caixa” (prestação de fazer), sem qualquer impedimento
por parte do utilizador (prestação de não fazer), mas
agindo com toda a cautela, discrição e urbanidade, por seus
prepostos (prestação de fazer, por terceiros); 3) o utilizador
deve contribuir para o Fundo de Promoções Coletivas, com o valor,
geralmente, de dez por cento sobre o aluguel pago (prestação de
dar, sem ser aluguel), para propiciar campanhas promocionais do Centro
Comercial, que reverte em benefício de todos (empreendedor e
utilizadores); 4) o empreendedor também deve contribuir para esse Fundo
(prestação de dar, afora a cessão do uso ou do uso e gozo
da unidade); 5) o utilizador deve pagar 13º salário aos empregados
e ao pessoal da administração do Centro comercial
(prestação de dar a terceiros); 6) todos os utilizadores aderem
ao sistema normativo criado pelo “Shopping Center”, constante da
Escritura Declaratória de Normas Gerais Regedoras das
Locações dos Salões de Uso Comercial e do Regulamento
Interno do Condomínio do Centro Comercial, que deve ser seguido à
risca pelos mesmos utilizadores (prestação de fazer); 7) por esse
sistema de regras, os utilizadores devem desenvolver atividades, nos moldes das
melhores técnicas, para manter o nível de
comercialização do “Shopping Center” (prestação
de fazer); 8) o utilizador, a não ser com anuência expressa do empreendedor, está proibido de
ceder o contrato de utilização de sua unidade (prestação de
não fazer); 9) o utilizador deve pagar ao empreendedor, para compensar o
fundo de empresa por este criado, uma importância em dinheiro, em
razão da “res sperata”
(prestação de dar, completamente diferente do aluguel ou de
qualquer encargo de eventual locação); 10) o utilizador
não pode deixar seu estabelecimento fechado, por mais de trinta dias
(prestação de não fazer); 11) o empreendedor obriga-se a
administrar o “Shopping Center”, mantendo em pleno funcionamento o
sistema de iluminação e de hidráulica das áreas
comuns (prestação de fazer); 12) o utilizador não pode
comercializar objetos de segunda mão, de segunda linha, recuperados por
seguro ou salvados de incêndio (prestação de não
fazer); 13) o utilizador deve apresentar à Administração
do “Shopping”, para
exame e aprovação, seus projetos de
instalações comerciais, letreiros e decoração, elaborados por
profissional idôneo e capaz, nos moldes e com as restrições
constantes da Escritura normativa (prestação de fazer); entre
muitas outras obrigações.
46. Como
tive oportunidade de demonstrar, com essa multivariedade de
prestações do contrato de utilização em causa, em
verdadeiro complexo unitário, não há que falar-se em
locação, mas em contrato atípico misto.
47.
Pouca importância tem para mim a nominação do contrato sob
estudo, importando, sim, sua perfeita compreensão e enquadramento.
48. Por
isso, para que ele não restasse sem nome, propusemos sua
designação por contrato de utilização de unidade
49.
Todavia, a regulamentação desse contrato faz-se
necessária, para que, no âmbito da manifestação
livre das vontades, não surjam abusos.
50.
Não se cuida, portanto, como procurei demonstrar, de mera
locação, ou de locação, com cláusulas
atípicas, pois esses elementos atípicos desfiguram a
locação, que não pode viver isoladamente.
51. Como
bem acentua Carlos Geraldo Langoni (“Shopping Centers” no Brasil,
“in” “Shopping Centers” cit., pp. 56 e 57):
«Ao invés de um esquema convencional de remuneração
do investimento com base na venda dos imóveis ou no aluguel puro e
simples – o que transformaria o empreendimento em mais um negócio
imobiliário – o ‘shopping center’, ao estabelecer uma
relação direta entre sua rentabilidade e a rentabilidade das atividades que ali irão se
desenvolver, criou as pré-condições para a
otimização do ‘marketing’ a um nível nunca
antes imaginado pelo sistema de comércio convencional. Paradoxamente, portanto, o que
há, de fato, de inovador nos ‘shopping centers’ é a relação
contratual que assegura a participação dos investidores no
faturamento (e, portanto, nos lucros das atividades que ali se
desenvolvem. Estabelece-se uma
permanente integração entre os interesses dos empreendedores do
‘shopping center’ e os dos comerciantes, que constitui a base para
a realização posterior de ganhos de produtividade, onde parcela
significativa é, inclusive, transferida para os consumidores».
52.
Todavia, malgrado estejamos em face de um contrato novo, sem apego à
legislação inquilinária vigente ou a formalidades para
existir, a livre manifestação da vontade das partes deve ser
preservada, como lícita, desde que não atinja dispositivo cogente
(norma de ordem pública), os bons costumes e os princípios gerais
de direito.
53. Isso
não impede que o juiz, ao enfrentar questões a esse contrato
relativas, decida aplicando a legislação vigente, por
analogia. A tanto ele está
autorizado, em qualquer caso, pelo artigo 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil.
54.
Ressalta-se, entretanto, que essa aplicação não deve
conflitar com a natureza do contrato ou provocar a quebra da sua unidade.
55.
Assim, não é incompatível, por exemplo, com a
indivisibilidade das prestações do contrato sob exame, a
cláusula ou decisão que autoriza o pedido renovatório do
contrato ou de sua revisão, nos
moldes da Lei do Inquilinato.
No mesmo sentido, desde que justificadamente, o pedido de retomada da
unidade pelo empreendedor.
56. De
ver-se, contudo, que qualquer contratação escrita, lícita,
exclui a aplicação, ainda que analógica, de qualquer
preceito legal da legislação locatícia. As normas cogentes, desta, só
atinem aos casos dos contratos de locação por elas previstos.
O
contrato atípico misto, em causa, resta, ainda, indene dessa
atuação legislativa.
57.
Julgando ação, que objetivou negócio jurídico
atípico, como é o de unidade em centros comerciais, o Superior
Tribunal de Justiça brasileiro (no REsp 15.339-0-RJ, 4a Turma, Rel. Min.
Barros Monteiro, j. em 28.02.1994, votação unânime, JSTJ e
TRF, Lex 62/153 a 167) acolheu
minha tese, entendendo que «o negócio jurídico em foco
possui afinidades com diversos institutos jurídicos
(doação; condomínio; fideicomisso; propriedade
resolúvel e sociedade), mas com eles não se confunde em virtude de sua individualidade
própria. Colhe nesse passo a anotação do Prof.
Álvaro Villaça Azevedo, para quem os contratos atípicos
mistos ‘formam uma unidade
indivisível um todo uno e complexo’ (Direito privado – 3:
casos e pareceres, cejup, p. 85, 1989)».
Do mesmo
modo, acontece com os contratos de unidades em centros comerciais, que
são atípicos mistos.
Formam um todo uno e indivisível, de tal modo que todas suas
obrigações devem ser cumpridas, porque o não cumprimento
de qualquer delas implica a rescisão do contrato todo.
58.
Desde o Projeto de novo Código Civil, nº 634, de 1975, já
constava o texto do atual art. 424 do Código Civil de 2002, que
estabelece que é lícito “às partes estipular
contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste
Código.”
59. Tive
oportunidade de acentuar (Álvaro Villaça Azevedo, Teoria Geral dos Contratos Típicos e
Atípicos, Curso de Direito Civil, Ed. Atlas, São Paulo, 2a
edição, 2004, pp.
Desse
modo, o Código Civil de 2002 fez progredir, bastante, o tratamento
legislativo dos contratos atípicos, não só pelas
advertências feitas no campo contratual, em geral, quanto a um mais
humano comportamento das partes, mas também porque disciplinou alguns
novos contratos, em acréscimo ao elenco do Código Civil de 1916.
Merece,
entretanto, alertar que aos contratos atípicos não podem ser
aplicadas as normas gerais fixadas pelo Código, para os contratos
típicos, porque estes, como visto, desnaturam-se com o complexo de
obrigações criadas nos contratos atípicos, a não
ser no que couber.